Alma dividida - Folha de São Paulo

06/09/2015 19:41

Depois de ficar em "mundo à parte" emendando novelas na Globo, Giulia Gam se prepara para representar Shakespeare no palco, questiona se o teatro é considerado relevante no Brasil e diz que trocaria o Rio por SP

Depois de três anos fazendo uma novela atrás da outra, a atriz Giulia Gam, 48, deu uma pausa no trabalho intenso que a deixou quase isolada do mundo. "Indo para o Projac de manhã e saindo às dez da noite, você acaba vivendo uma realidade paralela. [O centro de produção da Rede Globo] É um mundo à parte, fiquei desconectada."

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Ela teve quatro meses de férias para rever amigos, viajar e "baixar aplicativos de celular" antes de mergulhar em mais um projeto: ensaiar as peças "Macbeth" e "Medida por Medida", de Shakespeare, com o diretor brasileiro Ron Daniels, que trabalha na Broadway. "Eu queria um papel tranquilo... Mas como eu iria recusar a Lady Macbeth?", questiona a atriz, que vai se revezar entre as duas montagens a partir de novembro.

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Após dois meses em São Paulo, onde cresceu, ela voltou ao seu apartamento, no Leblon. "Olha só: todo mundo de vestido e sandália. Ainda estou no clima de SP!", disse Giulia, vestida com calça jeans, blusa preta e óculos escuros, ao chegar ao bairro de Santa Teresa para um papo com a repórter Letícia Mori.

SÃO PAULO
Todo mundo pode achar engraçado passar férias em SP, mas foi muito agradável, por incrível que pareça. Desde quando retiraram a publicidade [com a Lei Cidade Limpa, de 2007], a cidade parece que começou a se olhar, a ver o que era feio e valorizar o que tem de bom, reformar um prédio antigo aqui, ocupar uma rua ali. Sinto uma mudança, de tentar ter mais verde, mais respiros. Fiquei impressionada com a intensidade de acontecimentos culturais, de debates. É uma cidade gigante.

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Em SP dá para sobreviver só fazendo teatro. O interesse do público e da imprensa é muito maior. Tem festivais que no Rio a gente nem fica sabendo. Senti uma efervescência. Eu voltaria, sinto saudades. Minhas referências são de lá. Mas meu filho [Theo, de 15 anos] foi criado aqui, a referência dele é a praia.

O RIO
Nunca imaginei que poderia acontecer comigo. A vida inteira andei na praia do Leblon. Não estava com nada, só uma correntinha. Dois garotos vieram de bike e puxaram. Quando olhei, tava com sangue. Me senti impotente. Não adiantava ir na delegacia, descrever mais dois meninos de bicicleta. Essa que é a pior sensação: não havia o que fazer.

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Depois veio a onda de esfaqueamento. Foi uma semana pesada, não tive vontade de sair de casa. O Leblon estava meio quieto, em silêncio. Em uma cidade conhecida pelas belezas naturais, pela alegria, esses clichês, quando você vê que não pode desfrutar disso... Hoje é o primeiro passeio que eu faço pelo Rio e já vimos [policiais militares carregando] fuzis, já vimos a cidade esburacada, vimos que os bondes não estão funcionando. Isso machuca um pouco o coração.

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Violência sempre teve, mas houve uma tentativa de acreditar nas UPPs, na pacificação dos morros. A cidade parecia estar vivendo um momento de trégua, de otimismo, uma certa paz. Você sente um mínimo de segurança, um mínimo de estabilidade, de respiro e, de repente, vê que aquilo pode se esfarelar nas suas mãos.

O DRAMA
"Macbeth" está sendo uma espécie de catarse para mim. Discute um momento turbulento, uma insegurança do poder. Quem vai assumir, o que vai acontecer. É terrível ver que não está tão longe do que estamos vivendo no Brasil.

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Quando votei no Lula, a gente achava que seria a última oportunidade de ver a oposição no governo. Imagina ficar sem saber como seria o PT no poder? Historicamente eu achava importante. Depois as pessoas te cobram, só que você não está lá governando. Por isso hoje não declaro [voto].

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Sinto uma insatisfação muito grande no que me atinge. A gente não tem mercado, não tem estabilidade dentro da profissão, e é muito triste o teatro ter perdido seu espaço de discussão e de importância na sociedade.

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Um ator não precisa necessariamente passar por cinema, teatro e TV. No Brasil a gente acaba fazendo isso por questão de sobrevivência. Não sei... Será que, se o teatro acabasse, as pessoas iriam sentir muita falta dele no Brasil? É claro que é relevante. Uma peça pode ser transformadora. O problema é ter o acesso, é chegar ao teatro.

O DIVÓRCIO
Minha separação [do jornalista Pedro Bial, em 2000] e a briga pela guarda [do filho] me colocaram no meio de um furacão. O assunto era novidade, começava a se falar sobre guarda compartilhada. Até então, depois da separação [a criança] ficava com a mãe e ponto. Minha intimidade virou objeto de especulação.

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Eu não tive depressão pós-parto, mas isso foi tão noticiado que quase virou uma realidade. Na verdade, eu tinha me separado, estava com filho pequeno, com todas as angústias e ansiedades de ver o sonho da "família Doriana" não dar certo. Mas nunca tive esse diagnóstico.

A FAMA
[O assédio] Começa quando você aparece na TV. Com 19 anos, eu ia gravar todo dia na Globo, pegava ônibus, pegava fila para entrar. Quando foi ao ar o primeiro capítulo de "Mandala" [em 1987], eu desci de elevador do hotel e os recepcionistas fizeram: "Oooh!". Foi o primeiro dia que não pude ir de ônibus.

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Antes da internet, não tinha paparazzi, mas você não conseguia dar atenção aos fãs, que te procuravam na praia, no restaurante. Agora inverteu: é a imprensa que cai matando por qualquer coisa. Se você comprou leite, se engordou.

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A história [de uma suposta discussão entre ela e o diretor de "Boogie Oogie", quando Giulia ficou alguns dias afastada das gravações, em 2014] é prova de que qualquer boato vira notícia. Eu e o Ricardo [Waddington] nunca brigamos. Precisei de um descanso e ele viu que eu tinha razão.

A OBSESSÃO
Eu entro muito na frequência do personagem, é terrível. Fico obcecada, não faço nada que não seja relacionado ao papel. Com a Bárbara Ellen [da novela "Sangue Bom", de 2013] eu virei uma palhaça, divertida, engraçada.

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Eu não fico mais com nenhuma peça do figurino. Percebi que colocava aquilo e o personagem voltava. Quando são papéis agradáveis, é uma delícia. A Dona Flor [da série "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1988] foi agradabilíssima de fazer, uma coisa lírica, doce, minuciosa, delicada. Só de falar nela me vem o cheiro da Bahia, do dendê...

O TEMPO
Eu não me sinto na meia-idade. As mulheres ganharam uns dez anos. Acho maravilhoso que heroínas estejam ficando mais velhas, mulheres de 50 anos fazendo protagonistas românticas ou sexy. Quando nova, aproveitei muito pouco. Era a única virgem do Antunes [Filho, diretor que a levou ao teatro]. Tenho aproveitado mais ultimamente, por incrível que pareça!

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Até os 30 anos parecia que eu ainda segurava as rédeas do cavalo, depois ele disparou e eu fiquei tentando ver que direção ele ia tomar. Aos 45 você pensa: "Nossa, agora que estou vendo o tamanho da vida". Os números ficam grandes e os gramas mais pesados. Um pouco mais de álcool já é ruim, um pouco mais de comida é péssimo.

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As memórias vão ficando muito antigas e estranhas. Você começa a ter amizades de 20, 30 anos. Envelhecer é uma angústia para todo mundo.

Fonte: Folha de São Paulo / Mônica Bergamo