Giulia Gam, coração de mãe - Revista Única
No dia desta entrevista exclusiva a Única, Giulia estava no Bairro do Campo Belo, zona sul de São Paulo, na casa de seus primos por parte de pai, recolhendo lembranças – de móveis a fotografias – para se mudar para o Rio de Janeiro. É no Rio que ela disputa a guarda de seu filho, Theo, 3 anos. Desde o início do ano, o garoto está morando com o pai, o jornalista Pedro Bial, que detém a guarda provisória.
No ano passado, “ao sentir que o casamento estava insustentável”, a atriz foi para Nova York. Aproveitou a temporada como um período de reflexão, inclusive profissional, mas foi obrigada a voltar para o Brasil depois que Bial entrou com o pedido de guarda. “Assim que ele tirou meu filho de mim, eu despenquei aqui. É para morar no Rio? Moro no Rio. Não importa, eu tô a fim do meu filho.”, desabafa. “Se eu tivesse pedido a guarda nos Estados Unidos, como falaram para eu fazer, e não fiz por respeito a ele, ninguém tirava meu filho de mim.”
Giulia não entra em detalhes sobre a experiência amarga de estar separada do filho. Quando fala sobre isso, emociona-se: “Vou manter a elegância até quando eu agüentar.”
Cabelo curto, rosto amadurecido, mas que preserva um largo sorriso de menina, ela chega aos 34 depois de enfrentar “um turbilhão” na vida pessoal. Filha única do engenheiro-arquiteto José Carlos Gam e da psicanalista Deise Gam, Giulia perdeu no mesmo ano (1995) o pai, a avó materna e um tio. Logo depois, casou-se, mudou-se de cidade, teve filho (1998), separou-se.
Esta loira de ascendência européia – o “Gam” é do avô dinamarquês – , por acaso nascida na Itália (quando o pai estudava lá), considera a maternidade a mais formadora de todas as experiências que já viveu.
Giulia fala com autoridade e sensibilidade sobre esse momento todo especial em que, mãe, ergue-se de novo para voltar a ser mulher: “Em Nova York senti o impacto da cidade. Lembro quando percebi que estava voltando a me erguer. Nos primeiros meses do bebê, você fica o tempo todo curvada, abaixada cuidando da criança que mama no peito, que chora no berço, é banho, depois ela senta, tudo se passando fisicamente no nível da barriga. Se não são as pessoas te fazerem olhar para cima, você continua ali. Aí a criança começa a andar, você tem que segurar, fica com problema nas costas. Então eu lembro exatamente, eu botei o Theo no carrinho, ele já maiorzinho, saí pelas ruas, aí fui vendo um prédio alto, mais outro altíssimo, quando vi o Empire State fez ‘tau!’, estalou aqui o plexo. Eu pensei ‘eu tô com isso fechado (apontando para o peito)’. Aí olhei para o céu. Assim eu comecei a olhar pra frente de novo.”
O último trabalho de Giulia na TV foi um “Você Decide”, na Globo (1999). Em 98, fez a série “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Em teatro, trabalhou em “Cacilda!”, de Zé Celso, também em 98. No cinema, atuou em “Os Nomes do Rosa” (99), inspirados em contos de Guimarães Rosa. Ainda em 1999 filmou o longa “O Barão de Serro Azul”, de Paulo Morelli.
No final desta entrevista de seis horas, ela suspirou: “Nossa! Falei sobre toda a minha vida. Foi bom, porque eu pensei tanto ultimamente, e é a primeira vez que estou falando sobre tudo isso. Nos últimos dois anos, eu só fui falada, só falaram por mim.”
Única – Faz tempo que a gente não vê você.
GIULIA GAM – Eu fiquei um período me ressensibilizando. A fase de mãe que está ali a serviço, nutrindo a cria, para mim levou mais tempo porque eu quis viver mais isso.
Única – É a mudança para o Rio?
GIULIA – O Rio para mim é engraçado, a minha história lá é totalmente profissional. Tenho que vir sempre para São Paulo porque aqui é onde estão os primos, tia, onde estudei...
Única – É coisa de terra natal.
GIULIA – Terra natal mesmo é a Itália. Se bem que agora eu vou ter forçosamente que fazer a terra natal dentro de mim. Porque tá tudo espalhado. São Paulo sempre foi minha casa. Sempre mantive um apartamento aqui, apesar de casar e ter ido pro Rio. Aqui era o meu ninho, aquele lugar onde eu chegava, trancava a porta e era eu.
Única – A mudança, agora, é por causa do teu filho?
GIULIA – É, eu preciso montar um apartamento lá no Rio. Dessa vez vou levar minhas coisas, minhas fotos, minha memória genética (risos). Mas as fotos do Theo vão na minha mão. Tem duas coisas que vão comigo no avião, as fotos do Theo e os copos de cristal do meu avô dinamarquês. O resto vai de caminhão.
Laços de sangue e papel
Única – Tua vida mudou muito nos últimos...
GIULIA – Desde que meu pai morreu. Foi quando eu percebi que sangue é sangue. No meio de toda a tristeza e dor, eu pensei “eu perdi primeiro meu grande espectador, meu fã número um, minha platéia”. Percebi bem isso, “do que adianta ser uma atriz famosa, ser do mundo, se você não está com alguém?”
Única – Você sempre quis ter filho?
GIULIA – Ah, eu gosto de família, de filho, sempre quis ter. Eu até achava que a hora que eu tivesse filho ir ter três, viver pelada, na Alemanha ou na Dinamarca. Tinha um comercial antigo que a família toda ia pelada naquela torrezinha, na floresta, o pai, a mãe, os três loirinhos pelados. Tenho essa imagem na cabeça. Achava que ou ia ser atriz ou essas mães gordas (risos), a criançada pulando no meu colo.
Única – Por que Pedro Bial pediu a guarda do Theo?
GIULIA – Ele está usando essa ida para Nova York como se fosse uma fuga minha. Para se vingar de mim. Mas é claro que o Theo só poderia ter saído do país com a autorização dele. Para o Pedro, ser pai é o Theo estar na casa dele, ou do lado da casa dele. Ele (o Pedro) é o reizinho. Todo mundo tem que ficar ali e fazer o séquito.
Única – Por que você foi para Nova York?
GIULIA – Falar em retiro espiritual é ridículo, mas foi como se num primeiro momento eu tivesse precisado me fechar com meu filho, assim, eu e meu filho no mundo. Nova York é uma cidade que recebe o mundo inteiro e ela quer o seu trabalho, a sua personalidade única. Ninguém está ali de brincadeira. Todo mundo está ali porque precisa ganhar ou experimentar alguma coisa.
Única – Você tinha um objetivo específico?
GIULIA – Não. Logo que meu pai morreu, eu comprei um apartamento lá. Morei em Nova York três meses. Minha mãe, desde que meu pai morreu, mora lá. Aí conheci o Pedro, casei. Nova York foi um espaço importante porque, desde que meu filho nasceu, a sensação que tenho é que vivi um turbilhão. Eu sentia que algo estava errado, mas não conseguia identificar. Tinha acabado de me separar, estava ainda reformando a casa, vendo onde eu ia morar.
Única – E dessa vez?
GIULIA – Foi um momento de parada para pensar. Eu jamais imaginaria para a minha vida as coisas que estava vivendo naquele momento. Porque quando a gente casa e tem filhos, a gente idealiza aquela coisa família, ninguém tem um filho para se separar. E aí veio também essa questão familiar. O pai aqui, e eu lá. Eu voltei para o Brasil em nome do meu filho. Em nome de ver que família vai ser essa.
Única – Você casou no papel?
GIULIA – Não. Adoraria ter casado.
Única – Por quê?
GIULIA – Porque meu pai teve esse problema também.
Única – Que problema?
GIULIA – “Ai, não gosto de papel, eu acho que papel burocratiza a relação de casamento”. Mas esse papo para mim não cola mais. Da próxima vez que for para casar vai ser no papel, na igreja.
Única – Mas por quê?
GIULIA – Porque o Pedro também tinha esse discurso.
Única – E daí?
GIULIA – E daí que para mim, eu senti quando tive filho, essa simbologia é importante “agora eu sou sua mulher, vou ter um filho seu”. Isso de ir morando junto, vai trazendo as roupas, nasce o filho, vai rolando aí, parece república de estudante. Naquela época, o primeiro filho e tudo, eu precisava de uma aliança. Não de uma aliança anel, mas de um ritual. Eu pedia “Pedro, um ritual. Não precisa casar na igreja nem nada. Mas nem que a gente mude de casa, chame os amigos, eu faço o quarto do Theo, tem um almoço, qualquer coisa.”
Casinha e vida real
Única – Sonhava em ficar com um homem para sempre?
GIULIA – Sonhava. Quando eu casei e tive filho era porque era o homem da minha vida, com quem eu ia morrer velhinha. Acho que nós dois tínhamos esse sonho... Então é frustrante. Eu sou filha única de um casal que não se separou.
Única – O problema foi a idealização?
GIULIA – Filho é um divisor de águas num casamento, uma prova de fogo. Existe uma idealização muito grande da maternidade, mas as dificuldades ninguém conta pra gente. Os livros são sempre sobre a gravidez, nunca sobre o processo vivido pela mulher.
Única – Que processo?
GIULIA – Não. Na gravidez tudo é lindo. Sua taxa de hormônio vai lá para os píncaros, não tem ansiedade. Acho que não tem nada no mundo que seja igual a isso Foi a única vez na minha vida que senti paz. A sensação é de que ‘gente, eu não preciso de nada’. Claro que você enjoa nos três primeiros meses, tem sono, passa mal. Mas é que a natureza, nesse período, não está nem aí para a mãe, só quer saber de garantir a vida do feto, de perpetuar a espécie. Se você está com falta de ferro no teu organismo, vai ter que se virar para repor essa deficiência, porque tudo vai ser absorvido pelo bebê. É uma grande sabedoria da natureza. Até por isso tem a tal depressão pós-parto, porque a taxa de hormônio cai de repente depois do parto.
O poder do hormônio
Única – Começa aí a despersonalização...
GIULIA – É, você já não é mais a sua pessoa antiga, porque você vira uma barriga. A natureza literalmente te usa. Eu sei que estou desmistificando a coisa de ser mãe, mas eu acho isso mesmo. E depois que o bebê nasce, você fica dando banho, trocando fralda, dando comida, mas aos olhos dos outros você não está fazendo nada, porque não está ‘produzindo’ nenhuma coisa de fato, nenhum produto. É complicado.
Única – Mas a natureza só protege o feto?
GIULIA – Nos três primeiros meses é essa guerra.Agora, a mulher tem sua sabedoria também. A Camille Paglia diz uma coisa interessante sobre isso. Ela acha que o homem se ilude ao achar que tem o domínio sobre a natureza só porque domina a tecnologia, a medicina, vai pra Lua, pra Marte etc. Mas no momento em que a natureza quiser, provoca uma hecatombe, uma Aids, o sol explode. Como o homem não recebe nada, nada entra nele, não tem alterações químicas, biológicas como uma menstruação, acredita nesse controle externo.
Única – E isso dá a mulher um poder de...
GIULIA – Aí é que está. A Camille Paglia diz que a mulher, por ter esses ciclos internos dela, que não dependem dela, tem um contato com essa natureza primitiva. Ela não controla se vai ter cólica, se vai menstruar, se vai engravidar, ela não aperta um botãozinho e decide. Então ela sabe que tem algo dentro dela, e consequentemente, no mundo, que é muito maior do que ela, do que o homem, do que tudo. A Camille mostra que isso na verdade é um poder.
Única – Os homens entendem esse processo?
GIULIA – Não, eles se perdem um pouco. O homem nunca vai ter idéia do que é isso, e nenhuma mulher que não teve filho vai saber o que é isso. O meu caso é muito específico também porque o Pedro já vinha de um outro casamento, já tinha uma filha. Eu acho que é muito diferente quando é o primeiro filho de um casal. Porque aí as dores, lágrimas e ansiedade estão no mesmo patamar.
Única – Como o marido deveria agir?
GIULIA – Eu acho que o marido também é o responsável por trazer a mulher de volta da maternidade para o mundo, para a sexualidade dela. A função do pai é primeiro dar muito amor e depois conquistar, ter paciência e tolerância. Porque daquele peito, que é um objeto erótico, de repente sai leite. Então é o marido que precisa ir chamando de novo aquele corpo, que precisa estimular. Ele tem essa função de passagem, assim como a mãe está introduzindo a criança no mundo, o marido tem que reintroduzir essa mulher no mundo.
Copa do mundo de 98
Única – O que aconteceu com teu casamento?
GIULIA – O filme (“Os Nomes do Rosa”) foi a fase mais feliz da minha vida porque eu estava casada, filmando, grávida, no sertão. Acho que o que aconteceu foi mesmo esse descompasso de experiências. Toda a ansiedade dele ia para o filme. Toda a minha ia para a gravidez e depois para o bebê. Mas acho que foi especificamente o momento que a gente estava vivendo, a diferença de o Pedro já ter participado de um casamento de 12 anos, com enteado, filho e tal. E para mim ter filho era uma novidade. De repente eu tinha que lidar com ciúme de filha, de enteado. Ele já tinha uma filha de 9 anos.
Única – Vocês brigaram na Copa de 98?
GIULIA – Não, o que me desestabilizou ali foi que a babá que ia trabalhar com a gente desistiu de última hora. Então, foi um sufoco. Dali a um mês a gente estaria indo para a Copa na França. Eram os primeiros meses, um período de adaptação e reestruturação. Foi um erro meu ter ido. Eu fiquei muito solitária, sentia falta do Pedro, que trabalhava até de madrugada. Tinha uma babá e tal mas não adiantava.
Única – Mas teve aquela história da Suzana Werner com o Pedro Bial.
GIULIA – Teve esse boato. Como a gente não via a televisão do Brasil lá na França, não tinha a dimensão da coisa. Aí eu recebi um telefonema do Brasil falando “Giulia, está acontecendo isso. Capa de todos os jornais”. O Pedro ficou “p” da vida, ele já sabia. Ele falou “Pô, uma sacanagem, eu levar a minha mulher e meu filho de dois meses para a Copa e saírem dizendo que estou transando com outra, quer dizer, é uma loucura isso”. Eu acho que ele não transou, eu sempre banquei, “se você está falando, eu vou na sua. Eu tô casada com você, prefiro acreditar em você até que você prove o contrário”. Então acho que o Brasil precisava de notícia e armou-se uma grande novela.
Sânscrito e esgrima
Única – Em NY você fez um curso?
GIULIA – Fiz um curso particular com um professor do Actor’s Studio. Sempre tive vontade de voltar a estudar.
Única – Não fez faculdade?
GIULIA – Eu acabei o colegial e prestei vestibular para sânscrito na USP, só porque tinha vaga de sobra, e eu queria passar para a segunda fase do vestibular. Eu sabia que não ia poder cursar, porque a gente (o grupo de Antunes Filho) ia sair em turnê pela Europa.
Única – Sânscrito?
GIULIA – Sempre gostei de coisa esquisita. Eu tinha 8 anos quando virei para minha mãe e disse que queria fazer esgrima. Ela não acreditou. O sânscrito foi só para ter a experiência do vestibular. Mas meu pai estudava sânscrito, depois que foi para a Índia.
Única – Ele era budista?
GIULIA – Era um estudioso. Minha mãe é hinduísta. Ela tem um mestre de linhagem indiana. Meus pais viveram um tempo na França em 68, pegaram aquela coisa Sartre, Simone de Beauvoir, então foram pro caminho existencialista.
Única – E você, é religiosa?
GIULIA – Uma coisa que eu tenho muito clara em mim é o sentimento de Deus. Agora, os conceitos em que acredito são do hinduísmo, do budismo, dessas religiões em que você tem o carma, o darma e o livre arbítrio. O darma é o seu destino, o carma é o que você faz a favor ou contra esse destino. E o livre arbítrio, a liberdade de escolher. A sabedoria é descobrir em que momento é um ou outro que está agindo. Não tem aquela coisa de bom ou mau, a noção de pecado do catolicismo. É mais aberto.
Única – E agora quais são os planos?
GIULIA – Em Nova York fiz contatos com um pessoal de cinema independente. Tenho um agente lá. Aqui estou acertando com a Globo os trabalhos que vou fazer este ano. Vou gravar um “Brava Gente” inspirado no conto “A Mulher que Matou os Peixes”, de Clarice Lispector. E também um curta que vou fazer com o Paulo José. Fora isso, estou lendo muito roteiro de cinema e peças de teatro, tentando escolher.
Única – E a vida amorosa?
GIULIA – O homem mais importante pra mim agora é o Theo. Depois que você tem filho e se separa, percebe que não é qualquer homem que vai entrar mais na sua vida, porque ele vai entrar na vida do teu filho também. Isso não significa que uma grande paixão não possa acontecer a qualquer hora (risos). E se ilude quem acha que eu não sou mulher. Quero parar com essa babaquice de acharem que eu sou a pobre coitada sofrendo de dores por Pedro Bial, o gato. A discrição sobre minha vida amorosa é muito em função do meu filho.
Fonte: Revista Única
Arquivo: Bia*
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