'Pentesiléias' evidencia lirismo de sua autora
Daniela Thomas se afirma como dramaturga e poeta com a peça, que traz Bete Coelho e Giulia Gam no elenco
Bete Coelho conheceu dias melhores, Giulia Gam conheceu dias (muito) piores. Mas a novidade real nesta “Pentesiléias” é Daniela Thomas. Aquela mulher que vivia as voltas com martelos e operários, criando cenários para Gerald Thomas, é uma autora de teatro. Uma dramaturga, palavra muito feia. Uma poeta.
Afinal surge uma peça brasileira, no palco,, com ambição de sobra. No caso, a ambição de espelhar uma mulher ou algumas mulheres ou todas as mulheres. É um melodrama, como não poderia deixar de ser. Meloso, até ridículo. Apaixonado, lacrimoso, exagerado – não poucas vezes, passa da conta. Explode em lirismo.
Para tanto, a autora passou por cima da cenógrafa. Deixou somente um palco de madeira, pouco mais. Alguma iluminação, um grande painel no fundo, um fosso de castelo à frente. Nada que pudesse esconder o que ela trazia de novo: as imagens formadas, agora, pelas palavras – e não poucas, mas um jorro de verbo.
Mas não, não é uma peça como tantas outras, seguindo alguma norma da boa dramaturgia. É uma peça escrita para duas atrizes. Como fazia Shakespeare – sem exageros de comparação - Daniela Thomas escreve com uma companhia à mão. Escreveu pensando em Bete Coelho, em Giulia Gam – mais um elenco de nove atores.
Para Bete Coelho, desenhou uma rainha Pentesiléia, com qualidades de Medéia. Uma mulher cuja paixão tornou-se ciúmes. E que sofre, sofre demais, melodramaticamente. “Ai de mim, que estou amando”, grita em desespero patético. E ameaça, “eu vou arrancar meus olhos”. Depois corta, rindo “eu mato ela”.
Para Giulia Gam, no segundo e último ato inteiro, criou uma princesa Pentesiléia.A própria amazona, que conhece, ama e combate Aquiles. A mulher cuja paixão está surgindo, desconhecida e fora de controle. “Ai de mim, ai de mim”, grita – também ela – em desespero, também patética. É “desejo puro, pura carne”.
Daniela Thomas vai encontrar seus personagens sem respeitar autoria e bobagens assim. Está livre disso. Também está livre de qualquer bom gosto, nas palavras. Lambuza-se com as palavras. Ela parece realmente criar em jorro. Os solilóquios são teias em que uma imagem leva para a outra, para outra, sem um fim.
Exemplo, da princesa Pentesiléia, no programa da peça:
“Aquiles! Eu o vejo em toda parte, eu o sinto em todo canto! Minha alma parece afogar-se em Aquiles, dissolver-se em Aquiles.... O que é isto? Eu... Eu só quero – ó, Deus – eu só quero trazê-lo para junto do meu peito, afundar sua boca no meu peito, no meu umbigo, nas minhas coxas, ah, sua língua nas minhas coxas, na minha língua... mastigar a sua língua... seu peito... seu pau... devorar seu ventre... vísceras, verme. Eu mato esse verme. Eu mato, Mãe.”
Giulia Gam começa o segundo ato – a segunda peça - muito longe disso. Parece seguir ou procurar seguir a interpretação de Bete Coelho, que carrega no sarcasmo no primeiro ato. Mas não é por aí, para Giulia Gam e sua jovem e bela princesa. Quando insiste, ela exagera nas caras e bocas, de triste lembrança.
Aos poucos, porém, vai vencendo. Quando chega ao solilóquio citado, é outra. Tem intenção nas palavras e não pose. Tem sensualidade e beleza, não mais predicados de adolescente, de alguma Julieta, mas a sensualidade e a beleza apaixonadas de Desdêmona – uma personagem mais presente agora, em Giulia Gam.
É dela a frase final, “beijar, morder, qual a diferença, que é o nome da peça. Então a sua interpretação da princesa Pentesiléia já é plena. Está entre carinhosa e agressiva, delicada e violenta. Não à toa, chega a lembrar imagens de Joana D’Arc. Dá passagem, sem trava, à sua bela personagem.
Bete, como Pentesiléia rainha, não é a rainha do teatro, de outros momentos. Seu sarcasmo, seu diálogo incessante com o público, seus solilóquios recortados e sem desenvolvimento – nada alcança uma qualidade semelhante àquela de Leon, na última peça. A atriz parece ter cedido força à diretora.
Em cena, em não poucos instantes, Bete Coelho parecia estar dirigindo ainda. Não por passar marcação ou questionar ou incentivar os atores, mas por distanciar-se da ação, para não dizer do próprio papel. É o que quase sempre acontece com atores-diretores. Mas geralmente eles interessam pouco, como atores.
Bete Coelho interessa demais para deixar a interpretação em segundo plano. Mas a explicação, ao que parece, não está somente na dupla função. O sarcasmo e as piadas com o melodrama da personagem delatam como que uma falta de fé, um resquício de niilismo que não permite abraçar o patético da peça.
E aí não tem tragédia.
Renato Borghi, pelo contrário abraça o ridículo do personagem com uma vontade quase juvenil. Ele faz um conselheiro da rainha que acaba como tutor da princesa, mas enlouquecido, travestido de Pentesiléia. É dele o número escatológico que une o primeiro e o segundo atos. E outro em que canta um bolero.
Rodrigo Matheus chega a ser engraçado com seu pseudo Jasão machista e abobalhado, mas de Aquiles só tem os músculos. Muriel Matalon dá interpretação bem definida à amiga-amante da princesa Pentesiléia, em contraste bem humorado, que chega a soar perfeito para a atuação mais emocionada de Giulia Gam.
Fonte: Folha de São Paulo