Ron Daniels, um devoto de Shakespeare - O Estado de São Paulo

05/11/2015 21:05

Repertório Shakespeare, projeto que estreia hoje (5/11), no Sesc Vila Mariana, é a obra de um devoto. Enquanto conversa sobre suas novas encenações de Macbeth e Medida por Medida, Ron Daniels fala em “inteligência superior” e em “profundo respeito”. Em tom de confissão, diz ainda se sentir “meio místico”, como se em “contato com coisas milagrosas”. Para esse encenador brasileiro, fora do País desde os anos 1960 e hoje radicado em Nova York, as peças de William Shakespeare “são o Evangelho”. Nada mais, nada menos.

Até aí o discurso não difere muito do proferido pelo séquito de “fiéis” shakespearianos mundo afora. O curioso é que, em Ron Daniels, tamanha adoração não incorre jamais em reverência. Da boca de Thiago Lacerda, intérprete do nobre Macbeth, o espectador brasileiro não ouvirá versos em decassílabos. Ou sentenças em prosa extravagante. “Tenho profundo respeito. Porque amo essas peças. Mas nunca o considerei um clássico intocável. Isso é teatro. Então, a gente também pode brincar um pouco”, pontua ele, que já criou versões extravagantes, como a de um Hamlet de pijamas, e deve voltar a provocar barulho em fevereiro, quando estrear em Washington um Otelo protagonizado por um ator muçulmano.

Ao lado de Marcos Daud, o diretor passou três meses trabalhando nas traduções de Macbeth e Medida por Medida até encontrar o texto exato. E outros três meses na sala de ensaio com os atores. “O público irá sair com a sensação de que entendeu Shakespeare, todas as suas palavras. Ali, estão seres inteligentes, que gostam de ouvir, que gostam de entender. Não quero que a plateia se sinta burra”, fala sobre os espetáculos, que serão encenadas concomitantemente, com o mesmo elenco, em dias alternados.

Como um bom discípulo, Daniels garante não ter predileção por nenhuma fase do autor. Faz um veemente aceno negativo com a cabeça, como se fosse um pai questionado na predileção por um filho ou outro

Reconhecido internacionalmente, Daniels é diretor honorário da Royal Shakespeare Company, e já assinou mais de 40 montagens do dramaturgo inglês, na Europa, Japão e Estados Unidos. Em 2012, estreou Hamlet em São Paulo e descobriu em Thiago Lacerda um “verdadeiro ator shakespeariano”. “Não entendo como, porque ele não teve essa formação, mas é isso o que ele é. Entende a estrutura do pensamento de Shakespeare, como só gente como Ian McKellen é capaz”, diz o criador, em referência ao ator britânico a quem também já dirigiu.

Viajando pela Escócia, em 1964, Daniels soube do golpe militar no Brasil e resolveu não voltar mais. Encontrou pouso na Inglaterra, trocou o nome Ronaldo Daniel pela alcunha atual, foi emendando uma peça na outra. Passou 30 anos longe. E, em 1998, quando finalmente veio fazer uma visita, reencontrou Raul Cortez, com quem havia trabalhado no Teatro Oficina, no início de sua carreira, e surgiu a ideia de fazer Rei Lear.

Observadas as três peças que o diretor escolheu para fazer no Brasil – Rei Lear, Hamlet e Macbeth – é possível notar o foco sobre um período muito específico da vasta produção shakespeariana. Como um bom discípulo, Daniels garante não ter predileção por nenhuma fase do autor. Faz um veemente aceno negativo com a cabeça, como se fosse um pai questionado na predileção por um filho ou outro.

Coincidência ou não, o diretor escolheu montar aqui os títulos da maturidade de Shakespeare, escritos em um intervalo de menos de dez anos, quando examinou com apuro a questão da maldade e o embate do ser humano com suas pulsões mais violentas e selvagens. Em Lear, o personagem-título tem virtudes, mas traz dentro de si uma parcela do mal. Hamlet, por sua vez, defronta-se com uma vilania externa a ele. E, finalmente em Macbeth, encontramos um personagem que personifica a crueldade. “A concretização de nossos sonhos mais terríveis”, nos lembra Daniels. E o personagem perfeito para Thiago Lacerda.

Hamlet me deu, de certa forma, os instrumentos para tentar descobrir os mistérios de Macbeth”, pontua o ator. “O príncipe é movido pela consciência e pelo desejo de vingança, porém, sua capacidade de ação é abafada por essa gigantesca consciência. Já Macbeth é guiado pela ambição e tem a seu lado uma mulher capaz de conduzi-lo até o seu ponto de destino.” Se Macbeth era o texto que melhor cabia a Lacerda, Medida por Medida entra para compor o repertório criando um contraponto. O primeiro é um mergulho vertiginoso no mais escuro da alma humana. Para usurpar o trono e sagrar-se rei, Macbeth converte-se em assassino com o apoio da mulher, Lady Macbeth, vivida por Giulia Gam. “Ele precisa do impulso dela, da força da sua ambição”, lembra o encenador. “Ao contrário dele, consciente de cada um dos seus atos, ela é só desejo, só vontade, uma força incontrolável da natureza.”

Já a pouco conhecida trama de Medida troca a ‘noite’ absoluta por jogos de ‘chiaroscuro’. Ziguezagueando para contar a história de um nobre que quer coibir atos de imoralidade e corrupção com uma severa lei. “O texto derrapa pra lá e pra cá. É uma gostosura”, elogia o diretor. Com Luisa Thiré e Marco Antônio Pâmio nos papéis principais, a obra entra em bordeis e no submundo político para terminar em festa, casamento, perdão. Não oferece soluções para o dilema entre o homem civilizado e seus impulsos de destruição, mas traz esperança. “Não podemos esquecer que Shakespeare nasceu no campo”, ressalva Daniels. “Carregava a ideia de que mesmo depois do mais profundo inverno, a semente congelada voltará a germinar e virá a primavera.”

ENTREVISTA: “Lady Macbeth quer deixar seu nome na história”, diz Giulia Gam

Ao lado de Marco Antonio Pâmio, você estreou em Romeu e Julieta, sob a direção de Antunes Filho. Como é retornar a Shakespeare depois de 30 anos? E novamente na companhia de Pâmio…

Ter começado a carreira de atriz com um texto de Shakespeare com um grande diretor como o Antunes foi um privilégio. Reencontrar o Pâmio foi uma coincidência maravilhosa. Tivemos um entreato, mas somos parceiros e cúmplices. Eu vejo nele coisas que me fazem lembrar do Antunes e dizem que temos algo em comum na forma de atuar.

Lady Macbeth talvez seja a grande personagem feminina de Shakespeare. Como enxerga essa personagem e como se aproximou dela?
A princípio é assustador e depois encantador. Lady Macbeth é uma personagem icônica, uma grande personagem feminina extremamente forte e de pura ação. Age sem culpa, sem remorso e sem consciência de seus atos. Ron e eu fomos buscar uma Lady que fosse verdadeira para mim considerando sua coragem e sua ligação com o que há de mais profundo no feminino. Como mulher, ela não deixa de ser transgressora, vai conduzindo e passando por cima dos códigos masculinos, dos códigos de honra, acolhendo o rei. A ambição dela não é material. O que ambiciona é quase a magnitude da glória, ela quer como mulher deixar seu nome história.

Fonte: O Estado de São Paulo