A choldra no palácio (Que Rei Sou Eu?)

13/09/1989 20:48

A impagável Que Rei Sou Eu? chega ao final com uma revolução popular que apeia a nobreza do poder

Novela das 7 da Rede Globo costuma ser sinônimo de boas gargalhadas. É o horário dos personagens caricatos ou doidos pra valer, das cenas de comédia pastelão e de divertido nonsense. Que Rei Sou Eu?, no ar desde fevereiro e que nesta segunda-feira entra em sua última semana, não é exceção. Mas Que Rei Sou Eu?, ao longo de sua carreira, apresentou também novidades e surpresas que a fazem marcar um ponto entre as telenovelas dos últimos anos. A primeira delas foi tirar de cena a Zona Sul do Rio de Janeiro e de São Paulo, cenário das três últimas novelas das 7, e levar ao vídeo um legítimo folhetim de capa e espada passado na Idade Média, com cavaleiros, corsários, bruxos, príncipes e rainhas. A segunda surpresa foi quando se viu que o autor, Cassiano Gabus Mendes, montou esse cenário medieval – batizado de Reino de Avilan – apenas para construir uma sátira impiedosa ao cenário político e econômico do Brasil do governo do presidente José Sarney.

A terceira surpresa irá ao ar nesta sexta-feira, no último capítulo da novela. Numa manobra que faz paródia das grandes revoluções populares da História, o povo de Avilan vai invadir o palácio real, eliminar seus opressores, confiscar os baús da nobreza e, em nome da justiça, tomar o poder. A idéia, em matéria de espetáculo para o grande público, está longe de ser original. Até mesmo o último filme dos Trapalhões, A Princesa Xuxa, tem um desfecho semelhante. No mundo das telenovelas, porém, trata-se de algo inédito. Até há pouco, uma revolução popular no vídeo era algo tão impensável quanto Xuxa fazer uma cena convincente como atriz. “Ninguém mais via explorar o trabalho do pobre, agora quero que gritem comigo: viva o Brasil!”, exclama diante do povo de Avilan, numa das últimas cenas da novela, o líder dos rebeldes Jean Pierre (Edson Celulari), na primeira vez em que o nome do reino fictício é substituído pelo do Brasil.

Figurantes – Embora toda trama de Que Rei Sou Eu? tenha se amparado em conflitos e peripécias entre nobres e camponeses, o final em clima de revolução é, sem dúvida, o ponto culminante da história. Ao longo de toda a novela estabeleceram-se associações e até romances entre as duas partes. Aline (Giulia Gam) era copeira do palácio e alvo das paixões dos nobres. Suzanne (Natália do Valle) viveu um perigos romance às escondidas com o rebelde Jean Pierre. Corcoran, o bobo da corte e amigo colorido da rainha Valentine (Tereza Rachel) era um dos cabeças da conspiração. Não seria de se estranhar, portanto, um final cor-de-rosa com ricos e pobres se casando, inimigos se reconciliando e todos sendo felizes para sempre. O objetivo de Gabus Mendes, porém, era fazer mais do que isso. “A novela toda quis mostrar, em tom de sátira, a exploração da miséria, a ganância dos que controlam o poder – a revolução do final mostra que do jeito que as coisas estão neste país, tudo pode acabar mal”, diz o autor.

As cenas que mostram a vitória popular em Avilan incluem momentos de emoção dignos de uma Tomada da Bastilha tropicalista. Duzentos figurantes cruzam a ponte levadiça do palácio, amparando a ofensiva do grupo de rebeldes. Na sequência, acontece finalmente o duelo mais esperado da novela. De um lado, Jean Pierre, o príncipe bastardo, filho do Rei Petrus II – morto nos primeiros capítulos - , que passou toda a juventude entre os camponeses de Avilan e agora quer tomar o lugar que lhe é de direito. De outro, Pichot (Tato Gabus Mendes), o mendigo que passou a ocupar o lugar do verdadeiro príncipe depois de hipnotizado pelo bruxo Ravengar e que vive sob seu domínio. Enlouquecido pelo poder, Pichot torna-se o mais cruel tirano da história de Avilan e tem como idéia fixa eliminar o verdadeiro príncipe. O duelo de espadas entre ambos, numa cena que dura quase quatro minutos, termina, é claro, com a vitória de Jean Pierre.

A investida dos rebeldes prossegue. Agora, o objetivo é eliminar o corpo de conselheiros do trono, um grupo de raposas ardilosas cuja função é idealizar planos para extorquir o povo, seja na cobrança de impostos, seja em grandes negociatas, seguindo aquela célebre definição popular de autoridade, marcada pela expressão “O que eles querem é roubar”. O primeiro a cair é Crespy (Carlos Augusto Strazzer), atravessado pela espada de Corcoran (Stênio Garcia). Depois, tomba Vanoli (Jorge Dória), com um tiro de garrucha desferido por Jean Pierre. Outra sorte têm os conselheiros Gerard (Laerte Morrone) e Bidet (John Herbert), que conseguem fugir do reino para o exílio. À rainha Valentine, que Tereza Rachel interpreta de forma estupenda, lembrando a Rainha Louca de Alice no País das Maravilhas, é reservada a deportação de Avilan, mas com requintes de crueldade – ela passará seus últimos dias ao lado da desbocada baronesa Lenilda Eknésia (Dercy Gonçalves), sua mãe, a quem odeia. “A mensagem de Que Rei Sou Eu?, tão ligada a um momento de descrédito nos governantes, é a de que, mesmo o poder sendo problemático e corruptor, temos que fazer opções de atuação política”, avalia Giulia Gam, grande revelação de atriz brasileira nos últimos anos, que pela primeira vez participa de uma novela completa.

Pedágio -  A revolução popular em Avilan representa um final apoteótico para uma novela que aos poucos conquistou os espectadores. Segundo o Ibope, em sua primeira semana Que Rei Sou Eu? apresentou índices de audiência de 48 pontos em São Paulo e 40 no Rio, marca equivalente à da última semana de sua antecessora, Bebê a bordo. Na última semana de agosto, esses índices haviam pulado para, respectivamente, 54 e 55 pontos. Pode-se apostar que boa parte desse êxito se deve ao tipo de humor peculiar da novela, amparado numa sátira feroz à realidade brasileira. Ao longo de toda a trama, Gabus Mendes não perdeu a chance de transportar para a ficção o noticiário dos jornais, criando situações impagáveis.

Logo no início da novela, Avilan passou por uma reforma monetária. A antiga moeda, o ducado, foi substituída pelo duca, e perdeu três zeros. Isso em plena época da implantação do Plano Verão do governo Sarney. Não é preciso dizer que o duca foi um fracasso. Num capítulo mais à frente, o conselheiro Crespy sugere a seus pares que se acabe com os postos de pedágio nas estradas de Avilan para se aumentar a arrecadação. “Em lugar de pedágio, venderíamos selos que seriam comprados mensalmente e colocados na testa dos cavalos”, explica.

No reino de Avilan, as novas estradas passam invariavelmente  pelas terras de algum dos conselheiros, que é indenizado com o dobro do valor que elas valem. As guilhotinas 1 e 2 do reino, importadas da Alemanha a peso de ouro, nunca chegam a funcionar. A certa altura da novela, é aberta uma sindicância para se apurarem as irregularidades administrativas na Avilantur, órgão estatal encarregado do turismo no reino. E o filho de um dos conselheiros, certo dia, tem uma idéia brilhante: instituir um tipo de loteria clandestina baseado num sorteio com nomes de bichos. Para não ser perseguido pela guarda real, propõe um pacto logo aceito pelos conselheiros – pagar-lhes 50% sobre a renda das apostas. “De todas as novelas que participei, esta foi certamente a mais corajosa e criativa na forma de brincar com o cotidiano da vida real”, avalia Jorge Fernando, diretor de Que Rei Sou Eu?

Carruagens – Nem sempre, porém, as sátiras previstas pelo roteiro receberam sinal verde da Globo para ir ao ar. Houve cenas vetadas antes e depois de gravadas. O humorista Chico Anysio chegou a gravar uma participação especial como o nobre estrangeiro Taj Mahal, convocado pelo conselho da corte para esclarecer um golpe financeiro na Bolsa de Valores de Avilan. Segundo Gabus Mendes, os advogados do megainvestidor paulista Naji Nahas teriam escrito uma carta à direção da emissora pedindo direito de resposta caso as cenas fizessem referências satíricas aos recentes episódios envolvendo o nome de seu cliente e as Bolsas do Rio e de São Paulo. As cenas foram vetadas.

Um personagem que não chegou nem mesmo a ter cenas gravadas foi Élvio Camarões, uma alusão direta ao ex-presidente do Banco Central Elmo Camões, afastado do cargo por ter seu filho envolvido no escândalo das Bolsas carioca e paulista. O personagem pedia para o filho ser mais discreto nas negociações de sua corretora porque estava dando na vista que vinha obtendo informações sigilosas do governo, úteis às transações. Um outro personagem teve seu nome mudado – Herr Whisky (Milton Gonçalves), um emissário especial do governo alemão que logo no início da novela chegava a Avilan para propor a montagem de uma fábrica de carruagens. Ele falava das vantagens de se produzir um novo modelo de carruagem a cada ano com a simples troca de alguns acessórios cosméticos. O personagem, originalmente, chamava-se Herr Whisky Sauer e planejava ser uma tosca brincadeira com o poder das empresas multinacionais, mas a alusão ao entoa presidente da Autolatina, Wofgang Sauer, não foi bem vista pela direção da Globo.

Bruxo – Situar Que Rei Sou Eu? na Idade Média foi uma saída brilhante de Gabus Mendes para exercer uma sátira política numa emissora de TV que tradicionalmente só gosta de falar bem do governo. “Acho que foi bom para a Globo, para retirar a mística de que temas como esses não devem ir ao ar”, diz o autor. “E depois, no ano do bicentenário da Revolução Francesa, ninguém poderia chiar com a tomada do poder pelo povo em Avilan”, completa. Na verdade, no final da novela, Gabus Mendes assume um tom didático, menos esculachado, e sugere  que a tomada do poder pelo povo é um passo, mas também o início de um longo processo, ladainha que, ironicamente, acompanha o discurso de posse de qualquer governante. Ele deixa no ar o fantasma do continuísmo, e o faz através de um dos melhores personagens da novela, o bruxo Ravengar, uma interpretação estupenda de Antonio Abujamra.

Depois de assentada a poeira do levante, usando o nome de Richelieu Rasputin Golbery, Ravengar irá ao palácio para oferecer seus préstimos ao novo governo. Disfarçado de rebelde, ele coloca sua sabedoria à disposição do rei. “Ravengar é um pouco como as eminências pardas que atuam em todos os círculos do poder e com as quais já estamos até habituados a conviver”, diz Abujamra. “Sua volta é uma advertência de que são necessárias muitas idéias para se sustentar a vitória de um ideal”, completa. Para boa parte dos espectadores, é óbvio que tais filigranas da História não ficarão claras, e também é certo que, no fim das contas, o que se quer saber é quem-casa-com-quem. De qualquer maneira, ficará a lembrança de uma novela que conseguiu ser muito engraçada ao descrever a agonia  final daquilo que um dia os brasileiros chamaram de Nova República. Melhor que Avilan só a campanha presidencial.

Fonte: Revista Veja

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