A dama dos saraus

20/01/1991 12:36

Giulia Gam, 24, coordena o papo-cabeça de São Paulo no verão das 239 citações de Bruna Lombardi

No início era o verbo: Giulia Gam conheceu Haroldo de Campos, e viu que era bom recitar poesia. No dia 28 de novembro passado, convertida ao hábito, ela promoveu o sarau que o transformou em sumo-sacerdote de uma nova onda que invade as internas descoladas paulistanas – a volta do papo-cabeça. Depois de anos em baixa, mostrar lustrosa erudição passou a ser moda no verão dominado pela polêmica que as referências do livro de Bruna Lombardi suscitaram – e descobrir de onde foram extraídas as citações de “Nouvelle Vague”, o último Godard, tornou-se uma espécie de “gadget” cultural da cidade. Dançar em festa pós-saraus de Giulia Gam só fica bem depois de muito ouvir poesia recitada ao vivo.

Para conferir o necessário ar de seriedade e cerimônia ao momento da entronação de Haroldo, a casa da atriz – um apartamento de cobertura nos Jardins – foi, por obras várias, transmutada em templo adequado ao pretendido rito de arte. Na escada que dá acesso ao apartamento, grafiteiros do grupo Tupinãodá se encarregavam de anular qualquer resquício de tinta branca nas paredes. No terraço, gigantescos balões coloridos e iluminados alertavam à cidade que algo acontecia.

Como se tratava de uma cerimônia pós-moderna, não faltaram inclusive citações religiosas. A imagem de uma certa Santa Tertúlia, criadas pelos cenógrafos de “M.O.R.T.E.” (peça de Gerald Thomas onde trabalha Giulia) com base em similares barrocas e recém-eliminada da montagem, foi colocada numa espécie de altar, próxima do poeta que mostra caminhos e sua fiel discípula. Noutra citação, esta redundante, as paredes foram revestidas em plástico, referência ao húngaro Christo, também citado no cenário de “M.O.R.T.E.”.

Por volta das 18h, neste templo, fez-se o que Giulia chamou de “silêncio mágico”. Começou uma troca de gentilezas que acabou como deveria. Depois de vários “Fala você”, Haroldo de Campos levantou-se e começou a recitar trechos de “Galáxias”. Na visão de Giulia, aquele momento tinha um significado-citação religioso: “Ele batizou o sarau”. O verbo era Deus.

E todos ouviram as palavras de Haroldo. Lívio Tragtemberg; Os Titãs; Julio Bressane, que estava de olho num telão; Fernando Zarif, José Miguel Wisnik e Bete Coelho; Theo Werneck, o pessoal do Xpto, os membros do Luni, do Sossega Leão; as irmãs Vendramini; Ricardo van Steen, Aguillar, Ciro Pessoa; Cláudio Kahns e Mika Lins. A fina flor do papo-cabeça da paulicéia. Os saraus modernistas foram reinventados, só que a patronesse agora é uma italiana de Perugia.

 

Depois de Haroldo a própria Giulia, com Bete Coelho, recitou um trecho de “Fim de Jogo”, de Beckett. Arnaldo Antunes começou a ler Maiakovski. Dissipava-se lentamente o temor que esteve presente na fase de planejamento do evento: “A gente teve todo um cuidado para que não virasse Revista d’ – desculpe a expressão –, que não caísse numa coisa de freje, tipo ‘Ah!, o sarau, que puta astral, que legal’. A gente queria uma coisa muito espontânea”.

Depois das récitas, com os espíritos dos presentes mais desanuviados e iluminados pelo verbo, vieram as outras partes da cerimônia: vídeos da MTV no telão, festa com som ao vivo no salão e finalmente um animado baile, que durou até o início do dia seguinte: “As pessoas precisavam se encontrar num espaço que não fosse festa”, analisa a promotora do evento.

O sucesso do sarau levou a sucessivas e ampliadas reuniões semelhantes dezembro afora. Desavisados da primeira hora como o poeta Nelson Ascher e o citarista Alberto Marsicano se fizeram presentes nas reuniões subsequentes. A própria Giulia começou a contabilizar rápidos frutos de sua iniciativa: “Duas pessoas já me ligaram e disseram que resolveram comemorar o aniversário com um sarau.” Ela mesma,  no entanto, resolveu dar um tempo:  “É preciso manter a intimidade para dar confiança para as pessoas se exporem. Não sei como vai ser isso daqui para a frente.”

Os saraus de Giulia Gam pararam também porque a anfitriã estava se concentrando em outro projeto, seu trabalho com Gerald – ou Geraldo, como o chamou Caetano Veloso – Thomas (aquele que numa espécie de sarau em bar, homenageando James Joyce, perguntou se havia alguém da Irlanda na platéia para conferir a precisão de seu estudado sotaque irlandês). Na primeira semana de janeiro, ela estreou nada menos que duas peças dirigidas por Thomas: “M.O.R.T.E.”, dele mesmo, e “Fim de Jogo”, de Samuel Beckett.

Foi mais uma ocasião para Giulia descobrir que tinha “uma puta turma maravilhosa de pessoas”, como ela chama, que gostavam dela. Além de trabalhar no palco, funcionou como uma espécie de anfitriã dos camarins, recebendo elogios carinhosos de muitos de seus companheiros de sarau (leia texto nesta página).

 

Papo de camarim

É difícil escapar da redundância

Nem Bruna Lombardi – que estava lá, confira em Autofocus, na página 23 – conseguiria citar as obras completas dos presentes à estréia de “M.O.R.T.E.”, no último dia 9. A movimentação desses culturáveis foi grande, e fartamente acompanhada por olhares curiosos. Alguns luminares, como o venerando Paulo Autran, caíram fora antes do final do espetáculo. Outros viram e foram embora ao final, como espectadores comuns. Mas a maior parte dos notáveis presentes transitou como num carrossel pelas labirínticas escadarias do teatro Sérgio Cardoso. Foram “levar seu abraço” para os colegas atores.

No dia seguinte, na estréia de “Fim de Jogo”, a romaria se repetiu, desta vez em escala menor. Gerald Thomas não ficou para receber cumprimentos porque voou para a Alemanha no horário de início da peça – mas pediu que as atrizes enviassem o relatório dos eventos da estréia por fax. Bruna não reapareceu, nem Carla Camurati. O fluxo menor de pessoas, no entanto, não evitou que Giulia Gam ouvisse nada menos que 31 adjetivos em parcos 15 minutos no final do espetáculo (“Superlegal!” e o tradicional “Lindo” foram os mais empregados, 4 vezes cada; “Bom”, “Demais” e “Bacana” ficaram em segundo lugar, com 3 citações).

Do ambiente de reiteração não escapou nem mesmo Augusto de Campos, que proferiu uma sequência de três adjetivos (10,3% do total dos adjetivos empregados) à guisa de comentário: “Muito bem! Lindo! Formidável!” Mais teórico e vocal foi o irmão Haroldo: “Ficou muito bom porque ficou muito audível, não se perdia nada”, já Lívio Tragtemberg, que esperou os outros cumprimentarem, fez os comentários mais inaudíveis da noite, sussurrados no ouvido de Giulia.

 

Com o sucesso da peça – e dos saraus -  entre os gurus do papo-cabeça da cidade,  a posição de Giulia, que acaba de completar 24 anos, se tornou subitamente cômoda, principalmente ao se levar em conta que ela anda, como afirma, afogada em letras: “Não tenho mais forças para aprender”, diz melíflua. Seu método de abordar a cultura é adequado para quem atingiu posição tão vantajosa na contemplação artística: “Eu me ligo às pessoas que me interessam. Acabo conhecendo as pessoas e através das pessoas vou desenvolvendo um trabalho. Agora está acontecendo com a poesia: eu conheci o Haroldo e aí ele foi me apresentando as pessoas”.

Ela mesma reconhece que esse método é passível de críticas: “Antes eu criticava isso porque de repente me via cheia de pessoas que faziam e não tinham conhecimento para isso”. Mas curva-se ante os prazeres que a vida social da cultura proporciona: “É um tesão. De repente você recebe um livro do Haroldo autografado por ele mesmo. Então o conhecimento é superpragmático”.

A tendência de Giulia para viver a cultura vendo pessoas é antiga. Com 15 anos ela entrou para o grupo do diretor Antunes Filho, com quem diz ter aprendido muito sobre Renascença. Estreou aos 17 com Shakespeare, como Julieta. Aproximou-se depois de Fernanda Montenegro (“Aprendi tudo sobre o TBC”), Marília Pêra (“Ela me falou muito de circo”) e Daniel Filho (“Era do cinema, falava de ‘Os Cafajestes’”).

Mas as origens desse método são ainda mais remotas, em sua visão, chegando à infância: “Eu era pequenininha e no sítio dos meus pais em Cotia iam os mestres da Índia, o Zé Celso fazia espetáculos, o Living Theater ficou por lá. Desde pequena me jogaram na fogueira com excesso de informações”. Entre  tais excessos Giulia identifica as pesquisas alternativas da mãe (“Já fui tratada por médicos iridiólogos, curei gripe com argila na barriga, fui vegetariana radical, dessas de não comer nenhuma proteína animal, tudo isso”) e a cultura formal do pai: “Ele me levava sempre para a Europa, mostrava os museus. Ele queria ser pintor, morou seis anos em Paris, estava estudando pintura na academia de Perugia quando eu nasci”.

Na infância ela recriava a pressão cultural com uma saída pós-moderna: “Eu só contava para minha amiga Cibelle, mas era filha do Batman com a Mulher Gato. A Batgirl não servia para mãe porque era muito jovem”.  Com essa identidade secreta se julgava protegida de exigências: “Aquilo era meu mundo”. O pai não gostava de televisão, não desconfiava muito das secretas origens da personagem, imaginava Giulia. Para se aperfeiçoar no papel, pediu aos pais uma malinha e objetos vários, que guardava nela. Mas nos momentos em que se revelava o objetivo de tudo,voltavam as pressões da formação cultural: “O problema era defender a humanidade. Eu achava que tinha que ser importante, não podia morrer e simplesmente morrer. Eu queria que quando eu morresse as pessoas sentissem falta de mim”.

A vida escolar foi confusa. Depois de um período de estabilidade no primário, feito no Lourenço Castanho, pulou de galho em galho: “Ficava cada ano num lugar, em colégio experimental. Fiquei farta de experimentar. Eles entendiam tudo, tiravam a sacanagem da infância”. Aos nove anos, tal fartão se traduzia em gestos como colocar uma cobra morta na gaveta da professora: “Ela tacou a mão naquilo e quase morreu de susto, com toda modernidade dela, tentando entender as crianças”. Recusava-se a entrar na adolescência: “Nós dividíamos as mulheres em Frigias, as meninas que já tinham sutiã, namoravam, e Vândalas, que éramos nós, que queríamos ficar o máximo sem sutiã, sem beijar, sem entrar para o jogo”.

No jogo da cultura formal nunca entrou: “Prestei vestibular para sânscrito, sabia que não ia entrar”. Mas jogo de cintura sempre teve, para preencher vazios difíceis: “A coisa mais difícil do mundo é uma cortina que resolva todos os problemas de iluminação. Já tenho a armação mas não tenho a cortina”; “Não tenho quadros em casa, mas assim como eu aprendo com amigos, quero que minha casa seja feita por amigos para que fique muito pessoal”; “Gosto de ler com o livro no chão e eu deitada de bruços na cama, mas não tenho cama”, Giulia Gam transformou sua casa vazia no palco da moda cultural da cidade.

 

O pulo foi rápido, Giulia mudou para lá há pouco mais de um ano, vinda do Rio de Janeiro. De cara, resolveu dar uma festa, antes de mobiliar o apartamento. Estiveram lá: Pina Bausch, Milton Nascimento, Augusto e Haroldo de Campos, Bia Lessa, Bete Coelho, os Lunis, Xptos e Xanadus da vida. Essa festa deu-lhe a certeza de que tinha seu espaço na vida da cidade, que o Plano Collor ajudou a aumentar: “São Paulo é uma cidade onde todos trabalham e trabalham. Com o Plano Collor, todo mundo ficou sem grana e sem trabalho. Então todos começaram a se visitar e começou uma puta troca. Eu fiz um vídeo pros Tupinãodás, eles grafitaram minha casa. Assim a coisa foi indo”.

Em menos de um ano, Giulia Gam conseguiu se tornar o centro  de todas as trocas de informações dos papos-cabeça da cidade, cujas rodas, antes dispersas, percorria por motivos diversos. Chegou aos irmãos Campos apresentada por Bia Lessa, que estava montando a tradução de Haroldo do “Gênesis”, em 89. Ali passou a transar mais Gerald Thomas e Bete Coelho, velhos freqüentadores de rodas de conversa que incluíam Nelson Ascher, José Miguel Wisnik e até o citarista Alberto Marsicano.

Os poetas de sua geração conhecia melhor. Namorou durante dois anos Toni Belotto, dos Titãs, conviveu com Arnaldo Antunes e seus amigos. Por essa via chegou também aos músicos (embora tenha antigas paixões pela espécie) de grupos como Sossega Leão ou os roqueiros dos Peixes e os performáticos do Luni (que a ligaram aos mímicos do Xpto, grupo do qual ela acabou se tornando madrinha).

Por disponibilidade, como ela quer, ou pelo que seja, Giulia conseguiu atrelar todos esses seus amigos ao hábito de ouvir poesias em reuniões sociais. Fez força para isso: “Estou tentando criar uma São Paulo dentro de mim, juntar meus amigos, porque fiquei com um certo trauma da cidade. As histórias começam a rolar aqui mas logo eu tenho que ir embora para trabalhar”. As saídas começaram nos tempos do grupo de Antunes Filho: “Durante cinco anos, minha casa foi um armário na casa de minha mãe”.

 

Na São Paulo recriada dos saraus de Giulia, há seriedade: “Não é um sarau social. É lugar de encontro de pessoas que trabalham com isso. Não tinha na cidade um lugar para uma discussão sincera e real sobre arte. A gente só se encontrava em vernissage”. Mas não se fala em outra coisa na vida social da cidade. A turma das vernissages agora ouve poetas – e certamente acredita que há seriedade nos novos ritos da cidade.

Com a mudança, os detalhes aparentes – e antes esquecidos – que demonstram uma possível ligação com a cultura se tornaram relevantes. Em tempos de farto reconhecimento cultural, até um nome mais erudito Giulia ganhou. Chegou a ser uma simples Júlia para os paulistanos, mas a insistência com que Bete Coelho carregava no sotaque italiano para chamar a amiga Giulia fez com que muitos descolados freqüentadores dos saraus mudassem a maneira de tratá-la adotando a de Bete, supostamente mais distinta. Os deslumbrados comandam a festa do verão da citação.

Fonte: Folha de São Paulo