A estreia de Eça - O Primo Basílio

09/08/1988 18:08

Ninguém vai falar como se estivesse com uma batata quente na boca. No máximo, os personagens da minissérie “O Primo Basílio”, baseada no romance do escritor português Eça de Queiroz, que estreia hoje, às 22h20m na TV Globo, irão deslizar suavemente por algumas expressões da época (“O Primo” foi publicado em 1878) e comunicar-se na língua do “tu vais”, “quando quiseres”, etc. Isso, graças a um minucioso e longo trabalho dos adaptadores Gilberto Braga e Leonor Basseres, nos oito meses em que ficaram debruçados em livros de Eça, catando expressões e debulhando o estilo queiroziano, sem, contudo, alterar o original.

- Eu só pensava em levar o Eça para a TV com a maior fidelidade possível – diz Gilberto.

Esta é a primeira vez que o escritor português é adaptado para a televisão brasileira e alguns detalhes mereceram atenção especial. Por exemplo, o tratamento pessoal. Todas as pessoas tinham seus nomes antecedidos por “senhor”, “doutor”, “primo”, etc. Nenhum subalterno podia dirigir-se ao patrão na segunda pessoa.

Dificuldade mesmo foi descobrir que “touca” era a gíria que denominava a atual “camisinha de Vênus”. No 12º episódio o personagem Julião (José de Abreu) vai pegar  o livro “Poesias obscenas de Bocage” no quarto do Conselheiro Acácio (Sérgio Viotti) e surpreende-se ao encontrar, na gaveta, um objeto estranho. Divertido, exclama: “é uma touca!”. Conseguir desvendar que “touca” seria essa que provocava tantos risos foi um verdadeiro trabalho de garimpo para eles.

- A grande dificuldade foi encontrar o tom do diálogo. Não podíamos usar a sintaxe portuguesa porque ficaria falso na voz dos atores – afirma Gilberto.

- No Brasil não seguimos regras gramaticais e a língua falada em Portugal é muito correta, mas o Eça limpou a área para nós e o problema foi dissecar a linguagem para descobrir os truques do autor – completa Leonor.

O resultado é uma adaptação digna, fiel e atraente.

- Eça queria ibope. Queria ser lido pelo povo, por isso reformulou a língua português para torná-la acessível – explica Leonor.

No romance, Eça de Queiroz derrama sensualidade. Assim, outra parte da adaptação foi detectar as intenções do autor, uma vez que o telespectador não está lendo o livro e precisa perceber, em imagens, o objetivo do escritor, No quarto capítulo, quando Luísa (Giulia Gam) janta com sua amiga Leopoldina (Beth Goulart), ambas comem bacalhau e a segunda abusa da sensualidade. A essa altura, todos os telespectadores já foram apresentados a Leopoldina e saberão que ela é casada e pula de uma amante para outro. Esse jantar, por exemplo, antecede um encontro secreto com um deles e, por isso, ela pretende evitar comer alho. Vencida pela tentação, pede o alho e diz que “não pode um prazer estar atrapalhando o outro”.

Para Gilberto Braga, “O Primo Basílio” é uma obra-prima e tinha de ser tratada como tal. Graças a Deus, segundo ele, “Eça de Queiroz é um escritor que permite transposição para a TV”. Quem conhece um pouco deste autor sabe que a ele é atribuída uma importante renovação da língua literária. Em seu livro “Língua e estilo de Eça de Queiroz”, Ernesto Guerra da Cal frisa a sua “luta pela expressão” e se pergunta, afinal, qual seria a essência do estillo queiroziano, “tão reiteradamente louvado e tão tenazmente perseguido pelo seu criador durante toda a sua vida”. Mas não questiona – ao contrário – o título de Eça como o maior criador de formas novas que a língua portuguesa já revelou.

Elogios cruzando os mares

A comunidade portuguesa que vive no Brasil está exultante com o início da minissérie “O Primo Basílio” na televisão. Portugal, ávido consumidor de novelas e seriados da TV Globo, inverte agora os papéis e vai ver o público brasileiro consumindo o romance de um de seus maiores escritores, Eça de Queiroz. O presidente da Federação das Associações Portuguesas, e também secretário executivo da Fundação Cultural Brasil-Portugal, Antonio Gomes da Costa, conterrâneo de Eça (ambos nasceram em Póvoa de Varzim, em Portugal), acha que em qualquer caso, ganham os telespectadores.

- Portugal não faz favor nenhum em gostar das novelas da Globo porque todos sabem como são bons os trabalhos dessa emissora. Mostra, como esse consumo, que tem certo bom gosto. Evidente que essa minissérie, de que eu já vi o primeiro capítulo, vai ter grande repercussão em Portugal. Ficamos orgulhosos de ver o outro lado: os portugueses entrando na televisão do Brasil – disse ele.

O consumo queiroziano em massa é motivo de grande satisfação para a comunidade portuguesa que, segundo Antonio, não tem dúvidas quanto à exportação desse seriado para o país onde nasceu. “Você tem dúvidas? Eu não...”, pergunta e responde ele mesmo. Da mesma forma, Antonio aposta no sucesso – cá e lá – dessa série:

- “O Primo Basílio” retrata a Lisboa do século XIX. Os personagens do Eça são perfeitamente marcados pela época e tudo está mantido no seriado que tem uma produção de dar inveja. A beleza das fotos, a categoria dos artistas... Os portugueses vão adorar! – completa.

Fonte: Jornal O Globo