As confissões de Giulia

17/08/1988 21:16

O sucesso em O Primo Basílio, como a pecadora Luiza, está virando rotina na fulgurante carreira da senhorita Gam

Desde terça-feira passada, milhões de brasileiros que sintonizam a TV Globo estão podendo ver em ação uma das mais promissoras atrizes da nova geração: Giulia Gam. A convivência será tão gratificante quanto breve. Giulia parece estar-se especializando em papéis meteóricos, desses que duram pouco mas marcam para sempre.

Foi assim na novela Mandala, ano passado, quando encarnou Jocasta ainda jovem. Agora, na pele de Luiza, personagem central da nova minissérie da Globo O Primo Basílio, obra do escritor português Eça de Queiroz adaptada por Gilberto Braga e Leonor Basseres, desfilará pelas telinhas em 16 capítulos, quatro vezes por semana, desenvolvendo o tema adultério pelos vigilantes umbrais da Lisboa de fins do século passado – a personagem, depois de casada, torna-se a amante do primo Basílio. Giulia estará no ar um dia a mais do que nos tempos da Jocastinha.

Essa administração homeopática de talento é talvez a despeito de tudo, a menira mais recomendável de revelar para o grande público da tevê os dotes artísticos de Giulia e oferecer-lhe o que uma de suas mestras, a premiada Fernanda Montenegro, qualificou de “frescor de uma atriz eminentemente teatral, descompromissada com lentes e vídeo, e, portanto, sem os macetes e as defesas que fazem previsível o ator de televisão”. Trata-se de um elogio. As duas conviveram durante os oito meses em que Giulia preparou-se e encenou a peça Fedra, como Alicia. Um período que, para Giulia, sua carreira ganhou em profissionalismo e, para Fernanda, em maturidade: “Ela deixou de ser uma adolescente de 21 anos para se tornar uma jovem de 21 anos.”

Suas nuances na avaliação da primeira fase da carreira da jovem atriz paulista. Neta de dinamarqueses, por um lado, e de fazendeiros do interior paulista, por outro filha única de um engenheiro e uma psicóloga, José Carlos e Ana Daisy, e nascida  na cidade italiana de Perugia, em 1967*, Giulia começou sua vida artística pelas mãos do ator Marcelo Tass, mais conhecido como o repórter Ernesto Varela. Pelas mãos de Marcelo, ela chegou em 82 ao Centro de Pesquisa Teatral, comandado por Antunes Filho, depois de ter sido rejeitada, por ser menor de 18 anos, pela Escola de Arte Dramática de São Paulo. Os três anos seguintes dividiram-se basicamente entre ensaios que se alongaram por todo o ano de 83 – e encenação, em revezamento, de três peças: Romeu e Julieta, Nelson 2 Rodrigues e Macunaíma, sempre sob direção de Antunes que admirava sua dedicação à carreira artística e sua curiosidade sobre técnica de interpretação. “Ela é tão persistente que às vezes se torna chata”, disse certa vez. Hoje perderam o contato.

O papel de Julieta rendeu a Giulia, posteriormente, o convite de Fernanda Montenegro para encenarem Fedra. Macunaíma, contudo é responsável pelo êxito e repercussão no Exterior que deram a Giulia o que ela chama de “visão internacional de teatro”. Viagens atrás de viagens – para os Estados Unidos, Austrália e Europa – com o grupo de Antunes legaram à atriz uma vivência que poucas profissionais da sua geração tiveram em tão pouco tempo e uma sensação que Giulia define numa palavra: “aconchego”.

Durante os três anos em que esteve na companhia de Antunes e da terceira geração de atores do seu grupo – “hoje já está na quinta”, diz ela – a atriz paulista ambientou-se a um mundo que, se por um lado, tinha como grande vantagem o detalhismo, a precisão, a longa preparação do ator – “empregando um ano apenas em ensaios” -,  por outro era por demais fechado e protetor. “Era uma coisa de paixão, de trabalho em cooperativa – onde nos revezávamos nos papéis e em atividades como divulgação, assessoria de imprensa, fotografia, era uma coisa aconchegante, mas muito pouco individualista”, conta. O grupo tinha, e transmitiu a Giulia, um claro preconceito contra a TV. E na sua radical oposição ao consumismo, ao superficial descartável, se estruturou de uma maneira tal que nem os nomes dos atores apareciam em seus cartazes – detalhe considerado por demais individualista.

O resultado final dessa composição foi uma Giulia que, a respeito de ter uma formação ímpar – “Antunes me transmitiu muito a questão da disciplina, do estudo, do investimento cultural, como o caminho para desenvolver o ator realmente pleno r contextualizado no seu país e no seu tempo” - , pisa na direção do estrelato como quem anda em cascas de ovos. Está hoje mergulhada num prolongado descanso de quatro meses para fazer um balanço dos desdobramentos de Jocastinha e Luiza sobre sua carreira. Uma insegurança exagerada para quem tem um currículo que inclui, além dessa rica experiência teatral, e internacional com Antunes, estudos de canto, flauta transversal, balé e até a prática de esgrima durante boa parte da infância e adolescência – dos oito aos 15 anos, no Clube Pinheiros, em São Paulo.

Para quebrar um pouco esse medo do trabalho individual, sem arrimo, foi fundamental, segundo Giulia, sua parceria com Fernanda Montenegro. “O Antunes é a minha escola, meu grande mestre, mas a Fernanda me mostrou o outro lado do teatro. Ela me fez ganhar em profissionalismo e também na valorização da atuação individual”. De quebra, sob as asas de Fernanda, o teatro transformou-se para ela, em 87, pela primeira vez, em fonte de renda, cinco anos depois de ter pisado no palco pela primeira vez.

Ao desligar-se do grupo de Antunes, em 85, durante uma excursão pela Europa, Giulia sonhou com uma carreira no Exterior. Fez estágios, procurou observar grandes atores em cena e seguiu de perto a companhia de Peter Brook, um conceituado diretor inglês que, além do teatro, fez uma bem-sucedida incursão pelo cinema em Rei Lear. “Eles me mostraram que seria difícil, dentro de um mercado altamente competitivo, separada por barreiras culturais e lingüísticas, pretender como eu queria, fazer teatro na Europa”, conta. Giulia tentou então outra estratégia, trazendo para o Brasil um dos atores do grupo, Maurice Bernechau, para montarem juntos um espetáculo no País. “Não deu certo”, admite.

Já corria, então, o ano de 86, e Giulia acabou por cair em si. Através do Olhar Eletrônico, de seu “padrinho” Marcelo Tass, entrou no mundo dos comerciais pela porta da Telebahia. Esse primeiro comercial, gravado em São Paulo mesmo, usando um orelhão que veio da Bahia, acabou resultando na série de oito anúncios, de 60 segundos cada, para a Telesp. Nesses esquetes, telefone na mão, Giulia correu São Paulo, entrevistando pessoas, atuando como fiscal do Sarney, entre outros papéis. Fez também um comercial censurado para o desodorante Play-Boy. “Eu aparecia na cama com um outro jovem, namorando, e a censura entendeu que eu, apesar de maior de idade, tinha uma cara muito criança para estar naquela situação.”Foi o primeiro contato direto com a ranhetice dos censores.

Com os comerciais, somou à vivência diante das câmeras, que aprofundou, mais tarde, em dois filmes, No País dos Tenentes e Besame Mucho.  Mas persistia a insegurança. “Era preciso voltar ao teatro de uma forma diferente, mais profissional, e ver como é que eu me saía!” E aí Fernanda Montenegro cruzou seu caminho com um desfecho já conhecido. Agora ela estava segura para encarar a televisão, cujos segredos lhe foram desvendados pelo diretor da Central Globo de Produções, Daniel Filho.

“Giulia é uma atriz incrível”, elogia o diretor. “Só em estrelas do porte de Regina Duarte e Sônia Braga eu encontrei uma tão bem-dosada mistura de talento – de saber fazer bem, de carisma, empatia e vocação – ou seja, gostar do que faz.” Mas, segundo Daniel, o profissionalismo e a paixão de Giulia Gam ainda esbarram na forte presença de seu lado criança. Por duas vezes, durante a gravação da minissérie concluída no final de 87, Daniel Filho teve de chamar a atenção da atriz. “Uma quando ela chegou no primeiro dia de gravação com todas as páginas do script misturadas”, conta. O diretor aconselhou Giulia a ter um pouco mais de organização. A outra refrega foi mais grave: numa cena em que teria de apanhar umas cartas e ficar muda olhando para elas, Giulia fez tudo “muito desligada”, sem emoção, como que mecanicamente. “Parei a gravação durante uma hora e a deixei de castigo para que refletisse sobre o que tinha feito.” A lição valeu. “A cena repetida ficou perfeita”, orgulha-se Daniel.

Longe de criar atritos, esses leves contratempos com o diretor só fizeram por aproximá-los. “Eu me senti muito aconchegada por conta do clima que ele criou em torno de O Primo Basílio”, diz. Como nas peças feitas com o grupo de Antunes, Giulia encontrou em Daniel Filho um profissional preocupado em aproximar o elenco e dar-lhe uma visão global da produção. “Foi inteiramente diferente da minha experiência em novelas, onde os diretores têm de se preocupar em tocar a máquina. Em Mandala eu só conheci o Guarnieri (que fez o papel de seu pai) na hora da primeira gravação.”

O estilo Daniel Filho – ao menos numa minissérie, que tem um número muito menor de capítulos e é, ao contrário da novela, uma obra fechada – foi marcado, nesse plano, por uma longa leitura, no teatro Villa-Lobos, no Rio, de todo o texto da obra. Essa preocupação com o todo, chegou a incluir ensaios com todos os atores devidamente caracterizados e alguns interiores reproduzidos em salas de teatro. Detalhes como esses não custaram tão caro à Globo. O Primo Basílio consumiu US$ 1 milhão, mas garantiram uma cuidadosa e eficiente reconstituição histórica.

Fora algumas tomadas externas gravadas em Lisboa, o resto é artificial. A produção esmerou-se em detalhes. As tomadas de rua mostram a antiga Confeitaria Baltresqui, o Teatro São Carlos e o passeio público da capital portuguesa. Não são reais como parecem. Na verdade esses pontos, bem familiares aos lusitanos, foram montados em locais distantes dos seus endereços de origem. Os jardins do Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, serviram de palco. Lá abriram-se caminhos, cercas de ferro batido e quiosques compuseram o cenário. O Clube Naval carioca foi subitamente convertido no Clube Literário, presente em várias cenas do seriado.

A precisão foi conseguida à custa de várias andanças pelas terras de Eça de Queiroz. Para construir os personagens, o cenógrafo Mário Monteiro visitou a capital portuguesa, pesquisou suas ruas, comprou livros que retratavam a época, acompanhou, enfim, a pista de um ambiente já quase inteiramente descaracterizado. A única concessão foi com a Rua Patriarcal, que é uma ladeira, e nós a construímos com apenas um ligeiro declive para facilitar as gravações”, admite. Numa busca por antiquários e com a ajuda do Gabinete Real português, a equipe pôde descer a minúcia na composição dos quadros incorporando, por exemplo, uma máquina de moer carne do século passado. Para reproduzir o quarto de Luiza, recorreu-se a três camas semelhantes em tamanhos distintos, usadas de acordo com o ângulo das câmeras. Para a cena do passeio de barco de Luiza e Basílio criou-se uma estrutura de trilhos sob a água do lago, na qual o barco deslizava acompanhado de perto pela produção.

Desde a fase da construção dos cenários, a cenografia já vinha trabalhando. Ergueu 35 réplicas de cenários que auxiliavam na preparação do elenco. Inovou em recursos técnicos, lançando mão do newsmate num trabalho dramático no Brasil. Em shows e no cinema americano ele é comum e resolvemos aplicá-lo.” Basicamente, o newsmate foi introduzido para que os prédios de dois andares que serviram às filmagens aparecessem como se tivessem três andares, fazendo jus às características da Lisboa da época. É o que se pode chamar de ilusão de imagem.

Os cuidados com os atores não foram menores. No caso de Giulia Gam, em particular, lhe foram franqueadas as salas de vídeo da emissora para que pudesse ver alguns filmes que retratassem, de alguma maneira, a condição feminina na virada do século XIX. “Assisti A Dama das Camélias, Luz de Gás – com Ingrid Germann -, uma filmagem português de O Primo Basílio e E o Vento Levou, conta Giulia. A atriz paulista também começou, por força da necessidade de sua personagem, a cursar balé clássico “para perder os movimentos displicentes e bruscos que adquiri com a prática de esgrima, ganhar leveza e movimentos mais redondos” explica. Ainda para Giulia foi providenciado um curso com a fonoaudióloga Glorinha Beutenmulier para reduzir “o cantar paulista” do seu sotaque e chegar ao nível híbrido – nem o moderno português falado no Brasil, nem o rebuscado, e às vezes ininteligível sotaque português do século passado. Um detalhe implementado pelos adaptadores do texto de Eça de Queiroz, que optaram como conta Gilberto Braga, por “um meio termo, incorporando expressões e palavras originariamente usadas em Portugal, numa linguagem acessível aos brasileiros, sem se preocupar em reproduzir o sotaque”.

Procurou-se, ao mesmo tempo, respeitar ao máximo a obra de Eça de Queiroz Publicada pela primeira vez em 1887, época em que o autor ocupava o posto de diplomata português em Newcastle, Inglaterra, o texto motivou intempestivas reações em sua terra natal – a cuja pequena burguesia procurava retratar através das relações matrimoniais. Algo semelhante aos problemas que a minissérie teve com a censura no Brasil de fins do século XX. Daniel Filho teve de perder algumas longas horas em negociações com os censores para evitar que fossem feitos perto de 13 cortes na produção, que acabaram limitados a três.

Essa tentativa de manter o mais fiel possível o debate proposto por Eça de Queiroz no seu livro e os usos e costumes da época redundou numa produção gigantesca, envolvendo um exército de 53 atores – os quatro principais: Marília Pêra, Tony Ramos, Marcos Paulo e Giulia Gam – e três cantores líricos em permanente mobilização durante mais de cinco meses, além de mais de 40 técnicos, cenógrafos, maquiladores etc. O resultado final foi uma adaptação fiel, extremamente atraente, que motivou suspiros patrióticos até na colônia portuguesa do Rio e de São Paulo – para as quais o primeiro capítulo da minissérie foi apresentado em avant-premier. Certamente será mais um bem-sucedido produto de exportação da Globo – os países de língua portuguesa, são, desde já, mercados cativos.

*Giulia Gam nasceu no ano de 1966

Fonte: Revista Isto É

Arquivo Pessoal: Bia*

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