'Diretor precisa saber até onde chegar' (Parte 2)

03/11/2010 23:39

Atriz alemã Hanna Schygulla comenta relação de obsessividade com Fassbinder, ‘o mais rápido dos cineastas’

Leia a seguir a continuação do bate-papo entre as atrizes Hanna Schygulla, Alicia Bustamante, Bete Coelho e Giulia Gam em hotel em São Paulo.

Giulia Gam – Somos muito diferentes como atrizes [risos], mas admiro muito a Bete. E tivemos uma formação parecida porque trabalhamos com os mesmos diretores. Por isso ficamos unidas.

Hanna Schygulla – Ah. Então vocês são um raro caso de atrizes que ficaram amigas? [risos]

Bete Coelho – Sim, não nos odiamos [risos]. Eu só trabalho com pessoas que amo. No cinema, sei que é um pouco diferente, mas no teatro acho que é necessário amor.

Hanna – Isso é a única coisa que vale a pena. Êxito é muito importante, mas, se você não faz o que você ama, com as pessoas que você ama, nada faz sentido.

LÍNGUAS

Bete – Eu te vi atuando em italiano, em francês, em alemão, em espanhol...

Giulia – Ei, você vai roubar minha pergunta! Eu também ia perguntar isso! [risos]

Bete - ...e você tem um domínio tamanho da palavra quando atua, mesmo em outra língua. Fica evidente o amor pela palavra. Principalmente quando você canta...

Hanna – Língua é música. Quando se fala uma língua que não é a sua língua materna, há um outro proveito: você está um pouco desequilibrado, e nesse desequilíbrio surgem outras coisas.

Cantar em outra língua também é muito mais fácil do que falar. O canto permite que você assimile melhor as sonoridades.

ENSAIOS

Hanna – Eu não gosto muito de ensaiar. Eu sei que existe a necessidade, principalmente se uma obra tem muitos personagens. Mas às vezes eu não gosto de repetir a mesma coisa. Ensaiar não precisa ser uma regra. Antes de tudo, existe em mim o desejo de comunicar algo e de fazê-lo de uma maneira eficaz.

Bete – O filme “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” é cinema, mas é teatro...

Hanna – Fizemos em duas semanas. Eu venho de uma escola que não foi uma escola, foi uma experiência com o mais rápido de todos os diretores [Rainer Werner Fassbinder]. Ele criava uma constelação inteira e depois passava para outra coisa. Não era a tradição do cinema. E tampouco é a essência do teatro. Hoje em dia, com câmeras mais ligeiras, mais sensíveis à luz, as possibilidades são outras também. Como no caso do Dogma, dos filmes do Lars Von Trier.

Bete – Você gostaria de trabalhar com Lars Von Trier?

Hanna – Não. Ele nunca me pediu nada. E a câmera dele me deixa mareada. Mas gosto muito. “Dogville” é um exemplo de perfeita fusão de teatro com cinema.

DIRETORES OBSESSIVOS

Bete – Eu trabalhei durante muitos anos com um mesmo diretor, chamado Gerald Thomas, e foi uma relação muito difícil. Eu costumo dizer que eu tinha o Paraíso, porque tudo era muito criativo, mas estava num inferno também.

Quando se trabalha por muito tempo com um diretor, você pode criar um ambiente com certa obsessividade. Imagino que você tenha passado por isso também com Fassbindes.

Hanna – Isso aconteceu. Alguns diretores, para espelhar a sua visão de mundo, precisam passar pela experiência de saber até onde podem chegar com os seres. Ou com as portas da dominação.É possível tirar muitas coisas de um sujeito, e colocá-lo fora de equilíbrio pode ser uma coisa que vale a pena. Assim, algo de inesperado se manifesta. Mas, quando é exagerado, é melhor parar.

Giulia – Nessa época dos grandes diretores, era importante testar os limites. Hoje as coisas são mais equilibradas entre diretores e atores. Nos anos 80 e 90, a idéia era levar o intérprete à loucura. E, às vezes, ficávamos loucas de verdade.

Bete – Agora, me parece que você foi muito feliz fazendo esse filme com a Alicia.

Hanna – Mas também havia momentos de tensão. Havia momentos em que eu falava “cala a boca” pra ela. Ela me perguntava: “Mas por que você quer que eu faça isso?”. E eu dizia: “Vamos fazer e, depois, se você não gostar, a gente apaga”.

UMA IDEIA NA CABEÇA

Bete – Onde foi o limiar entre a vida cotidiana e a arte? O que te levou a compartilhar algo privado no filme “Alicia Bustamante”?

Hanna – Às vezes, quando estou sentada aqui observando, eu vejo gente passar e me sinto como em um teatro. Nem sempre se entende o que as pessoas falam, mas sua imaginação se põe a trabalhar. É isso.

CINEMA NOVO

Bete – E aqui, agora, existe uma produção mais estável no nosso cinema, bons filmes, mais investimento. O próprio brasileiro está gostando do cinema brasileiro. É uma questão de autoestima que é muito importante.

Alicia Bustamante – Agora em Cuba, quando estreia um filme cubano, as pessoas também dizem umas para as outras: “Ei, você tem de ver”. E antes não era assim.

Fonte: Folha de São Paulo