Giulia Gam busca a nova dramaturgia

20/01/2005 21:38

Um escritor em crise de inspiração encontra uma modelo extravagante e decide transformá-la em musa. Os dois passam dias e dias no banheiro claustrofóbico da casa dele, em um diálogo que avança aos trancos. Lá fora, cai uma chuva incessante.

Esse é o ponto de partida de “Dilúvio em Tempos de Seca”, texto de Marcelo Pedreira encenado na Mostra de Nova Dramaturgia Carioca em 2003. A história impressionou tanto o diretor Aderbal Freire Filho e a atriz Giulia Gam que eles decidiram trabalhar em uma nova montagem, chamando Wagner Moura para completar o elenco. O espetáculo ficou dois meses em cartaz no Rio e estréia hoje em São Paulo, para convidados, no SESC Anchieta.

Durante a primeira parte da peça, a modelo se encarrega de um longo monólogo. Depois, é a vez de o escritor soltar o verbo sozinho, em um quadro e incomunicabilidade. O dramaturgo usa a tempestade como uma metáfora do processo de depressão do ser humano. “Quando alguém está deprimido, fecha-se em suas questões, parece que o mundo está acabando lá fora”, diz Pedreira.

Para Giulia Gam, o maior mérito do texto é não apresentar uma história psicológica de encontros e desencontros. “Existe uma forte carga simbólica, de um casal no fim do mundo e do encontro do amor possível no final. Apesar da verborragia, a peça é impregnada de virilidade, humor e crueza”, explica. “Como o escritor é uma figura solitária que vive numa grande metrópole, a peça tem mais a cara de São Paulo do que do Rio”, aposta Wagner Moura, que se prepara para viver o primeiro galã de sua carreira na próxima novela das sete, “A Lua me Disse”, de Miguel Falabella.

Freire-Filho, vencedor do Prêmio Shell carioca em 2002 pela montagem de “A Prova”, enfatiza que precisava de dois atores ao mesmo tempo jovens e maduros, que já tivessem sido marcados pela vida. “O escritor é introspectivo e pessimista, e a modelo já tem um pequeno traço de decadência”, observa o diretor, que elogia a naturalidade com que Gam e Moura passam boa parte do tempo encharcados no palco.

Para representar o banheiro, o cenógrafo Fernando Melo da Costa optou por uma estrutura de canos aparentes cercados por centenas de guarda-chuvas quebrados. “Esse banheiro talvez simbolize o umbigo da casa e da civilização, ao mesmo tempo em que mantém aquele valor mítico da caverna. É o espaço onde os personagens podem ir ao extremo da intimidade”, completa Freire-Filho, que já tem outros dois projetos teatrais em vista: “Sonata de Outono”, de Ingmar Bergman, com Andréia Beltrão e Marieta Severo, e “Sangre”, do sueco Lars Norén, com José Wilker e Marília Gabriela.

A trilha sonora eletrônica de André Moraes, autor das trilhas dos filmes “Lisbela e o Prisioneiro” e “Meu Tio Matou um Cara”, “tem a transcendência de Philip Glass com uma pitada de Nirvana”, nas palavras de Giulia Gam.

“Dilúvio” chegou à atriz por meio do ciclo semanal de leituras que organiza há dois anos no Sesc Copacabana, evento que formou um público cativo. Seu arquivo já conta mais de 300 textos recebidos, escritos por todo tipo de gente, de viúvas a juízes aposentados.

Cria do CPT de Antunes Filho, ela avalia que o teatro brasileiro está saindo de um ciclo de diretores mais autorais e passando a dar mais valor ao texto. “As peças contemporâneas não trazem histórias, mas situações quase surrealistas que tratam de temas como violência e miséria”, diz. Giulia Gam deve ainda aparecer em dois filmes neste ano: “O Passageiro”, de Flávio Tambellini, e “Árido Movie”, de Lírio Ferreira.

Fonte: Folha de São Paulo