Giulia Gam, na primeira cena do mundo

10/03/1989 19:10

Sozinha no palco, a atriz vai contar a história do mundo em “A Cena da Origem”, peça feita a partir da tradução do “Gênesis” e do “Eclesiastes”

De hoje a domingo a formação do mundo estará nos gestos e na voz de Giulia Gam, que interpretará, no Teatro Mars, a “transcrição” do Gênesis e do Eclesiastes feita pelo poeta Haroldo de Campos e teatralizada por Bia Lessa. Em A Cena da Origem, Giulia contará com a música de Lívio Tragtenberg e com um cenário de peixes e pássaros feitos com a técnica japonesa do origami (dobraduras em papel). Ela ocupará uma cadeira num palco de 1,5m x 1,5m.

Haroldo de Campos começou a traduzir esses textos bíblicos há seis anos, direto do hebraico. Há cerca de oito meses começou a surgir o projeto de fazer uma leitura teatral dos escritos. Há um mês, iniciaram-se os trabalhos de montagem, num processo totalmente “fora de padrões”, como define Bia Lessa. Cenário, figurino, iluminação, música cênica e trabalho de ator foram desenvolvidos separadamente. E, apenas nos últimos seis dias, a equipe – que nunca havia trabalhado junto antes – passou a se reunir.

O texto traz duas versões opostas sobre o conceito da vida. No Gênesis, canta-se a glória da criação, em que o homem é um ser especial. O Eclesiastes, ao contrário, não proclama a vida eterna, nem diferencia o homem dos animais – todos retornarão ao pó. À primeira vista, o Gênesis traria uma visão otimista, enquanto que o Eclesiastes, pessimista. A Cena da Origem, no entanto, inverte essa percepção. “Na verdade, o Gênesis passa a idéia de dominação, porque vê o homem como um ser à parte, distante da natureza. E o outro texto fala do homem na Terra numa relação de troca – não de domínio –, em que ele está em constante diálogo com tudo”, diz Bia. “Esta seria a visão otimista da vida.”

A personagem de Giulia Gam é cíclica – não tem idade nem história. Não há cenas, mas um depoimento. Mais do que uma peça, A Cena da Origem é um evento. Para encarnar uma personagem que “não existe”, na definição da diretora, que contracena e dialoga com elementos como a terra e o ar, Giulia teve de fazer um trabalho de preparação totalmente diferente de tudo o que já conhecia. “Com outros personagens a gente trabalha a emoção, a memória, faz uma análise psicológica. Com essa personagem sem passado, tivemos de fazer exercícios com estímulos concretos, como sentir o reflexo da luz, a textura de um pano”.

Palavra por palavra foi lapidada com a intenção do re-sensibilizar o texto. “Percebi o quanto está enraizada a sacralidade de certos conceitos. A gente fala, por exemplo, ‘guarda-chuva’ de forma tão automatizada que o sentido de guardar a chuva se perde”, diz Giulia. O trabalho de Haroldo de Campos também leva em conta essa re-sensibilização da palavra. Céu, por exemplo, foi traduzido por fogo-água, como pode sugerir a palavra em hebraico.

“A Física está chegando à conclusão de que tudo o que existe no mundo tem a mesma química, somos feitos do mesmo material”, lembra Bia Lessa. “Da mesma forma, peixes, homens, pássaros – tudo é feito de papel” em A Cena da Origem, explica a diretora. Através de fios, os origamis circularão pelo interior do teatro. O cenário, concebido por José Luís Rinaldi, conta ainda com uma plataforma, no alto, que também será utilizada pela atriz.

A música foi composta especialmente para o espetáculo por Lívio Tragtenberg, que tocará saxofone durante a encenação. Também estarão interpretando as músicas de Lívio a soprano Lucila Tragtenberg e o barítono Baldur Liesenberg, acompanhados não só pelo saxofone do compositor, como também por marimba e percussão (Carlos Tarcha) e instrumentos eletrônicos (R. H. Jackson). Todos os músicos estarão no porão do teatro, sob o palco. Cantos litúrgicos judaicos também fazem parte da trilha e serão interpretados pelo hazan (cantor de sinagoga) David Kullock.

Vivendo atualmente em ritmo de novela – ela integra o elenco de Que Rei Sou Eu?, da Globo –, Giulia Gam está entusiasmada com o novo trabalho. “O espetáculo me resgata os questionamentos mais essenciais e universais. Porque, com o dia-a-dia, a gente não consegue se perceber com mais profundidade.”

A coordenação e a produção do espetáculo, assinadas por Marcelo Kahns, envolvem o trabalho de cerca de 30 pessoas – incluindo a iluminação de Paulo Milani e o figurino de Fernando Mello da Costa. A rápida temporada deve-se ao fato de que dificilmente a equipe conseguiria se reunir novamente. Mas isso nem de longe parece frustrante. “Ao contrário, é estimulante esta sensação de evento. Sensação de aqui e agora”, compara Giulia. “É uma aventura. A gente costuma buscar a segurança, quer ter o controle. Mas é na insegurança que a gente cria. Criação é isto: tentar outras coisas.”

Fonte: Estado de São Paulo

Arquivo: Nuno Bragança