Giulia Gam recria primeiro ser da Bíblia segundo Haroldo de Campos

09/03/1989 20:31

Se é verdade que os versos da Bíblia foram originalmente concebidos como monótonas e insistentes repetições musicais de um mesmo tema, provocando com essa fórmula uma alteração no estado de espírito do leitor (ou ouvinte), então não há razão para duvidar que eles podem render um bom espetáculo teatral. O poeta e tradutor Haroldo de Campos não pensou exatamente nisso quando traduziu trechos do Gênese e do Eclesiastes, agora utilizados no espetáculo “A Cena da Origem”, que estréia amanhã, no teatro Mars. Mas, certamente, como indica a própria raiz da palavra gênese (“vir a ser”), esse evento já estava previsto para acontecer. Pena que só por três dias. No palco, apenas uma atriz, Giulia Gam, três músicos e três cantores, dirigidos por Bia Lessa.

Para provocar o estado hipnótico no espectador  das cenas original e terminal do filho do homem, o compositor Lívio Tragtenberg juntou os barítonos David Kullock e Baldur  Liesemberg, a cantora Lucila Tragtenberg e mais dois músicos, R.H. Jackson (instrumentos eletrônicos), Carlos Tarcha (percussão e marimba), além do próprio autor da música no saxofone. Com um cenografia que faz referência direta às transformações morfológicas de M.C. Escher, origamis feitos Satika Gushiken passam sobre a cabeça de Giulia Gam como a caminho do que o mestre Eckhart, o místico alemão, chamava de união com a divindade. Tudo está contido em tudo, os peixes de papel se transformam em pássaros e Giulia, vestida com traje de cor terra, mal consegue disfarçar a ansiedade em descobrir o mistério desse espetáculo que acontece logo após a separação das trevas da luz.

Representação

Não se trata de uma representação da cena da origem, esclarece a diretora Bia Lessa, 30, que inaugurou há exatamente um ano o mesmo teatro Mars com seu “Exercício n 1”. Num primeiro momento, Giulia Gam, 22, a Aline da novela “Que Rei Sou Eu?”, aparece sobre um quadrado que é ao mesmo tempo terra e firmamento, para surgir no ar, pescando botas e repetindo o velho tema do Eclesiastes sobre o fim de todas as coisas. O que ela sente como uma menina que não fez a primeira comunhão corresponde a atingir o Nirvana ou ser absorvida por Brahma. “A primeiras tentativas de visualizar essa cena de origem faziam lembrar tanto o deus barbado que as crianças imaginam quanto uma energia em movimento que se manifestava de diversas formas”, diz.

Bia Lessa, que passava horas no cemitério da interiorana Avaré quando criança, deixou a atriz inventar sua origem e seu fim. “Quem observa está inventando a realidade. Nós somos o que queremos ser e, do mesmo modo que fugi da idéia de representação, também sugeri que Giulia não inventasse uma personagem”, conta a diretora. De acordo com o método nada ortodoxo de preparação do ator criado por Bia, ele é também um autor que deve estar consciente do poder de seus gestos. Se na terapêutica de Coué a cura se dá pela repetição mecânica do gesto, na de Bia ele deve ser totalmente espontâneo. “É só lembrar o Marlon Brando de ‘O Último Tango em Paris’, o jeito dele relacionar um gesto banal como mascar chicletes com o prenúncio de sua morte”, exemplifica.

Sem imitação

Para um evento de carreira fulminante, “A Cena da Origem” tem algo de uma “stravaganza” do Primeiro Mundo. Está custando em torno de NCz$ 45 mil, segundo se apurou, o que da uma média de NCz$ 15 mil por cada aurora do homem recriada no palco do Mars com o generoso patrocínio das indústrias Klabin e Metal Leve. O coordenador de produção Marcelo Kahns, 40, não confirma. De qualquer modo, o espetáculo, pelo número de pessoas envolvidas – mais de 50 – e os nomes da ficha técnica – de Haroldo de Campos a Lívio Tragtenberg, passando pela produtora executiva Rita Buzzar e a assessora Tânia Nomura – merece a disputa por um dos 300 lugares do Mars.

O público vai testemunhar, segundo a diretora, não uma “imitação de um universo, mas a criação de um espetáculo de risco que inventa uma cena de origem de um ponto de vista não-aristotélico, mas impregnado dos conceitos trabalhados pela mecânica quântica’. E, como nas aulas de física, é preciso estar atento a detalhes. “Cada objeto encerra toda uma memória emotiva e desempenha um papel tão importante quanto o de Giulia, assim como cada palavra deve ser resgatada individualmente”. Enfim, um evento para ser visto com olhos de microscópio e ouvido com a atenção de quem testemunha uma revelação.

 

O começo e o fim vistos pelo teatro

Segundo o poeta Haroldo de Campos, transcriador de “A Cena da Origem”, a peça é um “ensaio de teatralização de fragmentos da Bíblia ‘transcriados’ poeticamente em português a partir do original hebraico”. Na tradução – da qual alguns trechos já foram publicados pelo Folhetim – Campos resgatou com insistência musical a poesia do Gênese e do Eclesiastes, ou seja, do primeiro livro da Bíblia, que relata a origem do mundo, e de outro livro do Antigo Testamento que, segundo a tradição judaica, é atribuído ao sábio rei Salomão.

O Gênese é dividido em duas partes, sendo os primeiros onze capítulos dedicados à história da origem do homem, de Adão à tremenda mistura das línguas na torre de Babel, passando pelo dilúvio e, naturalmente, pela Arca de Noé. O resto do livro fala dos patriarcas hebreus. Parece dispensável explicar que a peça dirigida por Bia Lessa se restringe à cena da criação, retocando mais uma vez um livro já revisado centenas de vezes por séculos e séculos. Até por John Huston no cinema.

Vaidade

Ainda que o Eclesiastes tenha demorado a fazer parte do Antigo Testamento, essa parte da literatura sapiencial teve de esperar ainda muito mais tempo para ser teatralizada. É certo que Tarkovski fala dele o tempo todo em seu derradeiro filme, “O Sacrifício”, demonstrando que tudo é vaidade, mas os espectadores esquecem com rapidez certas verdades incômodas. A principal delas, sem dúvida, o inevitável fim que iguala todo o ser que se arrasta pelo planeta. Haroldo de Campos encontrou uma forma ideal de transcriar o “leitmotiv”: “Névoa de nadas (...) tudo névoa-nada”.

Giulia Gam se debate, experimenta a força dos ventos, da água e do fogo, para chegar a essa mesma conclusão. Auxiliada por um elevador de palco, ela chega a uma altura em que o espectador passa a ver estrelas no quadrado onde antes existia a terra vermelha da qual brotara o homem. Ela não está mais na Gehanna grega, o lugar dos condenados, mas na fronteira entre a origem e o fim, o ser e o nada. Como uma nova Baldur, condenada a permanecer no mundo inferior até que seu resgate seja decidido, ela observa o constante movimento dos pássaros que se transformam em peixes, o drama cíclico que se desenvolve desde o começo dos tempos na cabeça do homem e encenado por todos os seres para os quais importa a cena da origem.

Fonte: Folha de São Paulo