Mundo de risos e trevas - O Globo

18/02/2016 20:49

De Niterói para o mundo. De Ronaldo Daniel para Ron Daniels. Dos anos 1960 até hoje, uma carreira consolidada na terra de Shakespeare - assim como em palcos brasileiros e americanos. Aos 73 anos, o diretor brasileiro atualmente radicado em Nova York se diverte e se divide entre prazeres prosaicos e grandiosos. Confessa um certo gosto em ser chamado de Ronaldo e saboreia expectativas diante de estreias nacionais e cinco montagens internacionais que assina até o fim do ano. Numa delas, "OTelo", que entra em cartaz no próximo dia 29, em Washington, espera ver o presidente Barack Obama na plateia. Por aqui, imagina o público tomando a grande Sala da Cidade das Artes, amanhã à noite, no início da temporada carioca do projeto "Repertório Shakespeare", que reúne "Macbeth" e "Medida por Medida" no programa.
⁃ Estou aqui, no teatro, ensaiando um "Otelo" muçulmano dentro da capital dos Estado Unidos, um país atravessado por essa força anti-islã, imagina? - diz ele, em entrevista por telefone ao GLOBO. - Estamos indo à origem da peça. Afinal, o mouro Otelo é muçulmano, e não negro. Está dando o que falar. Até o Obama está interessado.
O presidente já foi convidado, "resta saber se virá", diz Daniels, que monta o texto pela primeira vez. No Rio, ele mostra a terceira investida de sua carreira em "Macbeth" e a segunda em "Medida por Medida".
⁃ São duas peças bem diferentes do que fiz anteriormente - garante. - cada montagem é uma nova visão.
Idealizado por Daniels em parceria com o ator Thiago Lacerda, "Repertório Shakespeare" estreou em São Paulo em 2015, faz temporada na Barra até o fim do mês e depois migra para o teatro João Caetano, em março. Em cena, Lacerda, Giulia Gam e mais 12 atores se revezam na interpretação dos personagens das duas peças. Com mais de 20 obras de Shakespeare já encenadas - só Hamlet foram sete, numa das vezes com o próprio Lacerda, em 2013 -, Daniels conta que hoje observa cada peça do autor como um fragmento de um único e monumental trabalho.
⁃ No fundo, Shakespeare escreve uma obra só, cujo foco é observar como o mundo afeta e transforma a existência de cada um de nós, como o contexto interfere e altera nossos destinos, a trajetória de cada um dos personagens - diz. - Ele é profundamente existencial. Cada peça oferece um olhar, um prisma sobre como o todo afeta a nossa vida.
Shakespeare afetou Daniels em cheio. Com 17 anos, atravessou a ponte para debutar como ator em "Romeu e Julieta". Depois, pegou a Dutra para fundar o Teatro Oficina com Zé Celso Martinez Correa e depois cruzou o Atlântico para atuar e dirigir na Royal Shakespeare Company. Lá, enfileirou montagens Shakespearianas, desnudou o ícone Mark Rylance num "Hamlet" de pijamas, encenou "Laranja mecânica" com trilha original de Bono e The Edge (U2), conquistou Nova York e dois Obie Awards, foi ao Oriente guiar o japonês Mikjiro Hira e marcou seu nome no Brasil com o bem-sucedido "Rei Lear" vivido por Raul Cortez. O resultado desse todo levou Daniels a um entendimento sobre a função de um diretor diante do bardo:
⁃ Sempre imagino que a obra foi escrita ontem. Shakespeare escrevia para uma plateia do seu tempo, contemporânea. Então estudo cada frase, cada situação, minuciosamente, para que a peça seja plenamente realizada e compreendida pelo público de hoje.
Comunicação direta seduziu atores
A busca pela comunicação direta fez a cabeça de Lacerda e Giulia, que se dizem transformados pela expertise e a visão de mundo do diretor.
⁃ Ron prima pela clareza da comunicação - ressalta Lacerda. - Ele tem uma frase que adotei: 'O que a gente faz aqui (no teatro) é pão'. É dizer: prestem atenção, essa é a saga de um homem que se transforma e chega a esse ponto.
⁃ Giulia segue:
⁃ Ele torna o inglês arcaico algo cristalino. Nosso "Macbeth" é um thriller emocional, um suspense sobre ambição, poder e destruição.
Em "Macbeth", Lacerda se afunda, aos poucos, numa trajetória banhada em sangue. Assombrado por bruxuleantes previsões e provocado pela maquiavélica Lady (Giulia Gam), sua ambição desmedida nubla a consciência, rompe hierarquias e instaura o caos após o assassinato do Rei Duncan e sua ascensão ao poder. A partir daí, não há volta. Medo e temperança são anulados. A ação atropela o pensamento, o gesto se adianta à reflexão, e a consciência do ato hediondo não é maior que as pulsões que o arrastam para o abismo. Em "Medida por Medida" o arco é semelhante, mas o impulso que domina o jurista Ângelo é de ordem sexual. Shakespeare transforma um retido paladino da justiça num corruptor, autor dos mais condenáveis abusos e assédios sexuais.
⁃ São obras complementares, uma trágica e outra cômica - diz Lacerda. - E cada uma revela, ao seu modo, seres que se transfiguram chegar ao poder. Nos mostram o que ocorre quando os pilares civilizatórios são postos abaixo.

Fonte: Jornal O Globo