No fim do século passado, uma história ainda atual - O Primo Basílio

07/08/1988 18:34

A senhora da história de Eça é Luísa (Giulia Gam), que se envolve amorosamente com Basílio (Marcos Paulo) num país em que a nobreza estava sem força; a Igreja, sem poder; e a burguesia, sem causa. Interessante mesmo era comentar a vida alheia – no caso, a forma com que Luísa trai Jorge (Tony Ramos), seu marido, enquanto ele está em viagens de negócios. Em casa, desafiando a senhora, a criada Juliana (Marília Pêra), sua grande antagonista. Para levar à TV o espírito da Lisboa do fim do século XIX, Daniel Filho buscou como consultor cenógrafo português Antônio Casimiro e fez algumas tomadas em Portugal:

- Lá filmamos alguns lugares que foram inseridos na série, através de efeitos, para ambientação. Todo tempo, tive o amparo fantástico de uma equipe técnica e um elenco excelentes. Se o romance tem ação, critica social, sensualidade e discute dogmas, tudo isto está na série. Estou satisfeito. Fiz o que queria, não tenho queixas. A série é fiel e nos deixou uma sensação de afeto, um sentimento mágico de quando as coisas dão certo.

Segundo Leonor Basseres, transpor Eça para a TV foi trabalhoso mas gratificante:

- Escrevemos e reescrevemos dezenas de vezes cada cena. Mas o Eça é um manancial enorme de ideias, ditos engraçados, pensamentos profundos, situações esdrúxulas: Então, não foi fácil, mas foi delicioso.

E surpreendente pela modernidade do auto, como diz Gilberto Braga:

- Em momento nenhum me detive para levar em conta que era uma história de 100 anos atrás e em outro país. É incrível, mas é tudo parecidíssimo com a nossa realidade. Aliás, sempre que o Visconde Reynaldo falava “abjeção de país” eu pensava no Brasil de hoje, muito semelhante nos preconceitos, na hipocrisia, na burrice, na inércia.

Também na constituição da personagem central encontra-se atualidade, pois ela simboliza a crítica do autor sobre a sociedade da época. Eça denunciava a pequena burguesia, proibida de ter prazer. Como diz Leonor, mulheres como Luísa não pertencem exclusivamente à Lisboa do século XIX, mas continuam aí, debatendo-se e sendo presas fáceis de pessoas como Juliana:

- Nesse grande painel da sociedade portuguesa, Juliana é uma representante, em primeiro plano, da classe trabalhadora. Ela oscila entre a bruxa e a mártir e sua relação com a patroa simboliza a luta de classe.

Para Gilberto, a relação entre Luísa e Juliana é o ponto alto do romance:

- Mas como “O Primo Basílio” é um romance extraordinariamente bem construído, o fato de valorizar tanto a Juliana não diminui meu fascínio pelos outros personagens.

Foi ainda um pouco aturdida com a repercussão de sua estreia na TV, em “Mandala”, que Giulia Gam começou a criar sua nova personagem:

- Não foi fácil fazer a Luísa, porque eu não conseguia fechar a personagem dentro de mim. Não sabia se ela se conhecia e até hoje tenho dificuldade em entendê-la. Precisei pesquisar a época, analisar a repressão moral que existia, a limitação na vida das mulheres e levar em conta a proposta de Eça de Queiroz que era fazer uma crítica da família lisboeta. Então, quem deveria ser a Luísa? Uma virtuosa senhora, zelosa de seu nome e seu marido. Mas o que ela se torna? Uma pecadora, por ser amante de Basílio. Por isso a condenação que Luísa sente. E como não é forte o bastante para levar adiante essa bandeira, ela definha e morre. Luísa é uma heroína, mas as heroínas que eu havia feito diziam o que pensavam e lutavam até o fim. Luísa é uma heroína ao inverso, que não sabe reagir.

Noivos quando jovens, Basílio e Luísa se reencontram quando ela já está casada com Jorge e é razoavelmente feliz. Basílio, porém, não a deixa escapar, como diz Marcos Paulo:

- Este foi o meu trabalho mais rebuscado enquanto ator. Fiquei fascinado pelo personagem. Representante do massacre cultural, ele tem a moral e os valores franceses e se relaciona com Portugal através deles. Basílio é um egocêntrico, tem a consciência do vencedor. Viveu a falência do pai, quando menino, e depois só teve lucro. Sua especialidade é a sedução, e é nesse jogo que ele envolve Luísa, sem que a sua condição de mulher casada interfira no relacionamento dos dois.

Já o drama vivido por Jorge é absoluto, pois, além de amar sua mulher, ele  obedece, em sua formação, a um padrão de homem que Eça de Queiroz denuncia nessa história, segundo Tony Ramos:

- “O Primo Basílio” mostra o machismo, a vantagem de certos postos na vida, e também como Luísa e Jorge são fruto de um mesmo pensamento moralista e conservador. Apesar disso, o Jorge é um homem justo, embora burocratize até o amor. Já a Luísa suspira por romance e é uma das milhares de heroínas que definham por amor. Esse é um tema eterno e que foi fascinantemente tratado por Eça, com sua visão crítica da nossa sociedade.

Indiferente aos achaques sentimentais de sua patroa, Juliana só tem um objetivo; a sua vingança pessoal. É isso que ela quer, é isso que procura. E foi essa a dificuldade na composição da personagem, como explica Marília Pera:

- A Juliana é uma personagem completamente azeda, e eu tinha plena noção do seu azedume. Por isso relutei em aceitar o trabalho. Claro, é um texto deslumbrante, mas eu questionava a amargura de Juliana enquanto pessoa. Tinha razão, porque foi um trabalho muito duro. Tudo que envolve a Juliana é terrível e foi feito dessa forma. A maquiagem é para enfeiar. Suas roupas são escuras e pesadas, assim como os seus sentimentos. É uma prova bonita para uma atriz, mas é terrível enfrentar essa prova, porque a Juliana é um tipo de pessoa que só sabe tiranizar ou ser tiranizada. Enfim, ela tem os piores sentimentos e o ator tem que tirá-los de dentro de si. Foi um processo doloroso, realmente. Mas agora que passou, não me arrependo.

Fonte: Jornal O Globo