Oficina invoca Cacilda em tempo de desesperança

21/11/1998 23:07

Encenação vigorosa de Zé Celso usa o exemplo da grande atriz, que nunca traiu sua vocação, para falar de entusiasmo e de ânimo às platéias de cenho franzido e pensamento nos indicadores econômicos

O Teatro Oficina de São Paulo completa este ano sua quarta década e, na platéia desconfortável e insólita da sua casa própria, espectadores encanecidos ombreiam com jovens. Há uma geração que cresceu e amadureceu procurando no teatro alguma coisa que esse grupo nunca deixou de oferecer. O crítico francês Bernard DORT definiu certa vez, como uma qualidade, a vocação do Oficina para fazer o “teatro da insurreição”. Estava certo. De diferentes formas, nem sempre acertando na mosca, o grupo encarnou invariavelmente o lado inconformista da arte.

Foi preciso mudar muito para preservar esse caráter insurreto. Propostas que, a seu tempo, significaram um desafio ao sistema político e aos costumes vigentes tornaram-se assimiláveis com o tempo. Quando isso ocorria, eram descartadas como inócuas. O poder de atrito sempre foi essencial para a formulação da sua linguagem. Dessa forma, ao longo da história recente do País o Oficina criticou o servilismo da burguesia ao modelo estrangeiro, a ignorância da classe média, os desmandos da ditadura militar e a abulia erótica da civilização de consumo. Seu foco temático alterou-se a partir da observação direta dos fatos mais importantes da história social e do seu entorno. Como um teatro declaradamente de função social, as formalizações que adotou foram sempre enraizadas numa crítica da existência concreta.

Nem tudo o que fez foi igualmente bom  e pode-se dizer que, em uma determinada época, não ficou imune a uma idealização quase folclórica do popular. Poderia ter submergido na imitação subserviente de uma fonte cultural que não é, por origem de classe, a sua. Por vezes exasperou-se e acrescentou aos espetáculos uma irreverência malandra, o que também não é o modo mais adequado de expressar a ira. Mas submeteu cada uma dessas etapas à crítica interna. Nunca foi de fácil assimilação; suas obras resistem ao efeito dissolvente da pizza depois do teatro.

A encenação que marca agora seu quadragésimo ano de trabalho mostra que o grupo liderado por José Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond continua auscultando, sobretudo, a respiração da sociedade no tempo presente. Procura diagnosticar qual é a nossa falta coletiva mais grave, contra a qual é preciso insurgir-se como corpo social. Não falemos de pecado, porque o Oficina assume a si mesmo como secular, mas de uma falta, alguma coisa pela qual somos todos responsáveis e que poderemos suprir, se assim o desejarmos.

Falta-nos ânimo. Por essa razão o Oficina invoca a figura de uma atriz que ouviu o chamado da vocação e não se distraiu dele, não ouviu o canto das sereias que podem afastar o ser humano do seu atributo mais precioso, Cacilda! foi escrita por José Celso Martinez Corrêa com uma estrutura semelhante à dos autos religiosos, em que uma alma caminha em direção à salvação e à imortalidade. Sua peça não poderia ser, está claro, sobre a imortalidade da alma ou da obra. A alma não interessa a um artista que adota sempre o mote sartriano de que a existência precede a essência. Tampouco a duração pode fascinar um homem que experimenta a efemeridade da cena e revisa, a cada criação, todos os seus procedimentos. O que o interessa em Cacilda! é provar que há um movimento ascensional nos artistas e, de um modo geral, em todas as pessoas que renunciam ao conforto em nome do desejo.

Sutilezas – Sua personagem, em contraste com artistas menores, resiste a tentações. Há a tentação do casamento, da vaidade, da prosperidade e do repouso. Todas indicadas com muita sutileza, às vezes por imagens sugeridas fora do texto, para que se configure a espessura do mundo do qual é preciso desprender-se. Não há lições de moral, mas uma empatia tão grande com esse espírito exaltado e livre da protagonista, que somos conduzidos, por meio dela, a um desprendimento e a uma aventura maior do que as que poderiam proporcionar as tentações vencidas. Mesclando à biografia da atriz Cacilda Becker as suas reflexões sobre a arte e as falas das personagens que representou, a peça não se restringe ao ânimo singular de uma intérprete desmedidamente talentosa. Torna essa figura o emblema de uma força coletiva cujo ponto de partida remoto é o mito. Da era mitológica ao tempo histórico, a arte vem produzindo esplêndidas expressões da coletividade e do indivíduo. A personagem Cacilda apropria-se delas para contar a si mesma e, inversamente, essas maravilhas do engenho humano ganham vida porque a atriz, sem nenhuma reserva, empresta-lhes seu corpo e sua voz e se funde a elas. A mútua fertilização da obra de arte e da vida é uma das mais esplêndidas e fortes impressões que o espetáculo provoca.

Ao mesmo tempo que nos fala do poder de presentificação do teatro – ouvimos as vozes de Beckett, de Schiller, de Nelson Rodrigues – a peça nos mostra como essa experiência alheia se faz carne. Cada incidente da vida pessoal de Cacilda Becker se amplia, ganha um sentido coletivo e uma imensa força de repercussão, por meio das personagens que ela atravessa como uma aventura e que a atravessam como uma revelação de si mesma. A têmpera de Cacilda-personagem encontra eco na herança histórica do teatro e parece possível que outros indivíduos, dotados da mesma vontade e da mesma entrega, encontrem nesse legado a sua narrativa, uma narrativa igualmente grandiosa de um destino singular.

Contudo, é preciso escolher. O arbítrio, a escolha e a idéia de que somos responsáveis por nosso destino atravessam, de formas diferentes, todos os momentos da narrativa. José Celso inicia sua peça no território do mito, em que Perséfone faz um pacto com Hades para que, periodicamente, a natureza se renove. Também a história, para o Oficina, impõe a renovação periódica desse pacto. Quando a sociedade não divisa utopias no horizonte, quando a fala coletiva não se levanta além de um murmúrio queixoso, é hora de renovar o pacto.

Há muitas outras coisas nessa vigorosa comemoração da meia-idade do Oficina. Mas, para começar, é preciso reconhecer que, uma vez mais, o Oficina toca onde dói. Fala de entusiasmo – e de como ainda é possível entusiasmar-se – a uma coletividade de cenho franzido, com os olhos no chão e o pensamento nos indicadores econômicos. Pobre assunto para quem herdou a Terra e as tragédias de Sófocles.

Fonte: Estado de São Paulo

Arquivo: Nuno Bragança