Papo de atriz (Parte 1)

03/11/2010 23:33

A convite da Folha, as atrizes Giulia Gam e Bete Coelho debatem a carreira e a profissão com a alemã Hanna Schygulla, musa de Fassbinder, que ganha retrospectiva na Mostra

Giulia Gam chegou de branco, Bete Coelho, inteira de preto. Nada que tenha sido combinado previamente. Foi coincidência. Ou sinal de que suas personalidades são complementares, o que enriqueceu a conversa marcada pela Folha com a atriz Hanna Schygulla, homenageada da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Giulia é mais solta e dona de uma gargalhada irreparável, que Bete vez ou outra repreendia com cutucões ou com um olhar que foi ficando inquieto com o passar dos minutos ao lado da musa alemã dos filmes de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982).

Mais tarde, Bete confessou: estava louca para fumar – o que não era permitido na pequena sala do hall do hotel Tivoli, nos Jardins.

Desarmada pelo charme de duas fãs mais jovens, ícones do teatro brasileiro, Schygulla estendeu a conversa para mais de duas horas. Quebrou assim um protocolo estabelecido por ela própria.

O bate-papo transcorreu como em um chá das cinco. Ou das quatro, sugeriu Bete, já que a atriz cubana Alicia Bustamante, companheira da atriz alemã, se juntou ao trio.

Foi tempo suficiente para Giulia concluir que, apesar das diferenças (de idade e de nacionalidade), atrizes se deparam frequentemente com as mesmas questões.

O encanto de um diretor “obsessivo” – Gerald Thomas foi citado em comparação a Fassbinder – pode ser perigoso. E o risco do tédio com a própria profissão é sempre tão iminente quanto para médicos ou advogados.

Hanna contou que recusou, por exemplo, a proposta de David Lynch para trabalhar em “Veludo Azul” (1986). “Eu não poderia e nem tinha vontade. Não poderia me permitir o luxo de me entregar a uma coisa se eu tinha outras necessidades”, diz.

Para ela, a arte se nutre do ser humano que é capaz de dedicar-se a outras atividades também. “Especialmente ao amor em todas as suas formas”, completa.

A paixão move todas elas e dosifica ajustes ou também alguns desajustes que alimentam a profissão.

“É possível tirar muitas coisas de um ator, e colocá-lo fora de equilíbrio pode ser uma coisa que vale a pena”, revela Schygulla sobre suas experiências ao lado de Fassbinder, um autor que compôs obra singular com todas as suas reflexões sobre a alma da mulher.

A tensão no set de filmagem pode ter determinado, por exemplo, a densidade de uma obra como “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant” (1972), rodado em apenas duas semanas, segundo Schygulla.

“Mas, quando há exageros desse comportamento, o melhor é parar”, pondera.

Foi o que ela fez após a sua atuação no filme “Effi Briest”(1974), quando brigou com seu mestre e diretor.

Schygulla só voltou a reencontrar Fassbinder em 1978, quando atuou em “O Casamento de Maria Braun” (1979). O trabalho lhe rendeu um prêmio de melhor atuação no Festival de Berlim.

MOSTRA

A passagem da atriz por São Paulo, a convite da Mostra Internacional de Cinema, acompanha uma seleção de filmes antigos de sua carreira. No entanto, Schygulla rejeita a palavra “retrospectiva”. Prefere o termo “prospecção”, principalmente por conta da exibição de trabalhos mais recentes.

É o caso de “Alicia Bustamante” (2009), que tem exibição marcada para hoje, às 19h, na FAAP. O documentário foi feito a partir de filmagens íntimas que retratam a vida em Paris de sua companheira cubana, a atriz Alicia.

“Ela é muito criativa. Não só no trabalho. Tudo se converte em comédia quando ela fala. Queria que o público conhecesse isso”, conta Schygulla, que comprou uma câmera sem compromisso. “Filmava quando ela estava ali do lado.”

Elas se conheceram em Cuba, nas filmagens de “Me Alugo para Sonhar”, série para a televisão produzida no início dos anos 1990, com direção de roteiro do moçambicano Ruy Guerra. Há quase 20 anos as duas vivem na capital francesa.

CUBA

Como Schygulla foi parar em Cuba? Essa é uma história à parte. Um ano antes, conheceu o escritor colombiano Gabriel García Márquez num café em Paris. Foi ele quem indicou o papel a ela: uma mulher estrangeira que interpretava sonhos.

Nas últimas décadas, a atriz deixou seu posto de musa da Alemanha para alçar voos  em terras estrangeiras. Paralelamente aos trabalhos de atuação, dedicou-se ao canto. Fez interpretações antológicas de Brecht e Kurt Weill ao redor do mundo. Em São Paulo, inclusive, em 2002, quando cantou ao lado de Maria Bethânia, em espetáculo dirigido por Bia Lessa.

Agora, por trás das câmeras, Schygulla se diz mais inclinada a dedicar-se a uma linguagem documental.

“A representação da vida pode me entediar também. Hoje, eu vejo as coisas muito interessantes nas histórias que as pessoas me contam. A vida real se tornou mais interessante”, revelou a atriz, diante dos olhares atentos de Giulia e de Bete.

Em um dos momentos mais emocionantes da conversa, Hanna retomou imagens de sua infância para referir-se a um sentimento de “pertencer ao mundo”. Ela nasceu em 1943 em uma região próxima da fronteira entre Polônia e Alemanha e suas primeiras memórias de infância são relacionadas à Segunda Guerra.

“A convivência com refugiados determinou muita coisa em mim”, diz. “Havia sempre a consciência de que sou como os outros, mas de que também sou outra em relação aos meus pares.”

Esse sentimento lhe permitiu interessar-se profundamente por tudo o que seja do outro. A observação permite mergulhos profundos. “Com muita curiosidade e sem nenhum medo”, ela encerra.

Fonte: Folha de São Paulo