Peça discute isolamento e remete ao dilúvio bíblico

09/09/2004 21:00

Peças com dois personagens, em especial um homem e uma mulher, não faltam na história da dramaturgia. Mas “Dilúvio em Tempos de Seca”, que estréia hoje no Teatro Dulcina, no Rio, desafia os limites do realismo psicológico e procura extrair questões metafísicas do isolamento de um homem (Wagner Moura) e uma mulher (Giulia Gam).

“Eles não são um casal, mas dois representantes da raça humana. Como há um dilúvio do lado de fora, a situação deles é bíblica, remete à Arca de Noé. Há uma série de alegorias e metáforas na peça, que não trata de dramas psicológicos”, diz Giulia.

Foi a atriz que descobriu o texto do pouco conhecido Marcelo Pedreira, 40. Giulia coordenava as leituras do projeto Tudo É Teatro e soube da peça, que tinha se destacado no ciclo Nova Dramaturgia Carioca, em 2003. Para ela, Pedreira “é o mais paulista dos autores cariocas”.

“Ele faz um teatro urbano que não é solar, mas com toques absurdos, surrealistas, com influência de [Albert] Camus e [Samuel] Beckett. É algo mais parecido com autores paulistas como Mário Bortolotto e Fernando Bonassi [colunista da Folha] do que com as características cariocas”, diz.

Pedreira assume seu lado “paulista”. “Minha dramaturgia é mais densa, enquanto no Rio, inclusive entre os autores do Nova Dramaturgia Carioca, predominam as comédias leves, peças mais light.”

“Dilúvio em Tempos de Seca” tem pouco de light. Uma chuva torrencial impede duas pessoas de sair de um apartamento. Não há energia elétrica e os primeiros andares do prédio foram cobertos pela água.

Ele, escritor, a contratou para “posar”; no caso, servir como referência para que ele escreva um livro definitivo sobre a condição humana. Em meio a drogas e álcool, aumenta a tensão e o sentido que dão para o que estão vivendo.

“São duas ilhas de solidão que tentam, no início, integrar-se usando as palavras, verborragicamente. Mas se dão conta da falência das palavras e passam para outro plano. Buscam uma relação dentro de limites humanos, da cumplicidade e da compreensão das dores de cada um”, explica Pedreira.

Segundo ele, a tempestade cumpre a metáfora da lavagem de um tempo para o surgimento de outro. A água que impede os personagens de ir para a rua também é alegoria para se representar a depressão do escritor, acuado pelo mundo hostil do lado de fora, como muitos se sentem.

Vencedor de vários prêmios nos últimos anos, o diretor Aderbal Freire Filho procurou evitar qualquer aparência de realismo psicológico. A ação não ocorre no tradicional palco italiano, mas sim em meio ao público, numa arena; e há rápidos entreatros em meio às dez cenas, nos quais os atores trocam seus personagens por uma função narrativa.

“O espetáculo procura sublinhar essa dimensão filosófica da peça. Ela, por exemplo, é uma modelo, função que resume bem a aspiração geral do mundo de hoje. Procuramos tratá-la como uma deusa da mitologia contemporânea, do caos do nosso momento”, diz o diretor.

Wagner Moura também ressalta a atualidade da peça de Pedreira. “Dos textos contemporâneos que eu li, é o mais impactante. Fala com a linguagem de hoje de como as pessoas vivem hoje, relacionam-se hoje”, afirma o ator.

Fonte: Folha de  São Paulo