Portugal critica O Primo Basílio

10/01/1989 14:30

Intelectuais lisboetas acham que o seriado, atual sucesso na televisão portuguesa, não é uma adaptação bem-feita do romance de Eça de Queiroz

Lisboa – Assim como encantam milhares de telespectadores portugueses, as telenovelas brasileiras irritam outros, que se sentem ‘invadidos intelectualmente”. Na encruzilhada está agora o seriado O Primo Basílio – sob rigorosa observação, já que se trata da adaptação de um romance de Eça de Queiroz, um dos orgulhos nacionais dos portugueses. Na última semana, vários artigos de jornais locais se dedicaram a atacar e defender o seriado. Vence a defesa.

Um jovem cronistas português, João Miguel Figueiredo, utilizou uma página inteira do semanário O Independente para criticar, no Primo Basílio da Globo, o idioma “brasileiro” e os seios de Giulia Gam, além do colo de  Louise Cardoso. Diz o cronista: “Por nossa culpa, o Brasil antecipou-se, pregou-nos uma peça (sic). Agora, vemo-nos na situação de ir à TV Globo pedir messas”.

Na primeira parte do artigo o jovem ocupa quase meia página para descrever estranhas sessões de espiritismo a que se teria dedicado para tentar descobrir se Eça está se revirando na tumba a cada vez que vê um episódio do Primo Basílio. Isso porque, na opinião dele, Eça de Queiroz “enjeita violentamente esta infeliz adaptação”. Referindo-se ao idioma, ele garante que “Eça não apreciaria ver sua língua portuguesa, que ele lidava melhor do que ninguém, tornada língua diabética, aflautada nessa cana-de-açúcar”. Curiosamente, ele diz ainda que a obra está adaptada ao brasileiro – como se o português do Brasil e o de Portugal tivessem tanto a ver como o francês e o inglês.

João Miguel refere-se também a Giulia Gam, a Luísa do Primo Basílio – “Esses seios não são seios queirozianos”-  e ao “colo opulento” de Louise Cardoso, a criada de copa de Luísa, que jamais na obra de Eça – e com isso alguns estudiosos concordam -  seria tão explícito. Confunde ainda Marcos Paulo com Rubens de Falco e garante que é irreconhecível a Lisboa novecentista, “revista em trucagem nos episódios do Brasil’. Por fim, ele encontra uma culpa portuguesa: a de que “o Brasil tenha se adiantado porque a RTP (Rádio e Televisão Portuguesa) não pensou nisso antes”.

No dia seguinte, o jornalista Jorge Leitão Ramos, do Cartaz, suplemento do semanário O Expresso, faz uma análise menos ufanista: “A maior incomodidade que esta adaptação levanta é contudo exógena a ela. De algum modo, coloca-nos perante uma realidade que nos tolhe: a de a RTP não ter meios que lhe permitissem fabricar a adaptação do nosso patrimônio romanesco à televisão. Pelo menos com tanta dignidade quanto a que a TV Globo usou para este romance de Eça de Queiroz”.

Em seu artigo, Leitão Ramos lembra que o seriado, dirigido por Daniel Filho, é um dos blocos de maior audiência da RTP 2 e ressalta que a adaptação de Gilberto Braga e Leonor Basseres é “de uma fidelidade quase canina à letra do romance, reproduzindo diálogos e a sequência da ação praticamente tal e qual Eça os escreveu”.

Leitão Ramos concorda, entretanto, em que o sotaque não seja o forte dos atores brasileiros, mas contemporiza: “Começa numa coisa tão incontornável como a língua não enquanto textualidade, mas enquanto som, ritmo verbal, entoação. Ouvir falar brasileiro em Lisboa será sempre incômodo aos nossos ouvidos e infiel a uma verdade íntima da realidade”.

Para Fernando Dacosta, jornalista do suplemento Jornal Ilustrado, que essa semana dedicou simpática e imparcial reportagem aos brasileiros que vivem em Portugal, o problema das séries televisivas “não reside na presença da Globo, reside na insensibilidade (à produção nacional) da RTP”. Cabe aqui ressaltar que a televisão portuguesa é recheada de enlatados americanos, sendo mínima a produção nacional. Conclui-se, portanto – como diz Leitão Ramos no final de seu artigo ao se referir à falta de condições da RTP, - que “não adianta atirar pedras ao telhado do vizinho...”

Fonte:  Estado de São Paulo

Arquivo: Nuno Bragança