Uma balada pop, sob o signo da vingança - Romeu e Julieta

26/04/1984 16:43

Antunes Filho estreia sua versão de Romeu e Julieta e anuncia para maio a volta de “Macunaíma” e “Nelson 2”

A catarse aristotélica está de volta aos palcos, inaugurando um novo gênero que enterra, definitivamente, o “drama dos farrapos” do pobre diabo Lenz, “clown” de William Shakespeare sem a genialidade do mestre. Trata-se da “balada pop”, nascida em 1595 sob o signo da vingança, em que, supostamente, o amor deve vencer odiosas querelas feudais entre os Montagues e os Capulets, os Montecchios e Capulettos, para usar o nome original dessas duas famílias de Verona.

Imortalizadas por Shakespeare e instaladas, novamente, num palco brasileiro (no caso, o Teatro Sesc Anchieta, a partir de hoje às 21 horas), as duas famílias inimigas prometem fazer tudo para agradar ao gosto médio, mantendo viva a sua “vendetta” de séculos, desta vez ao som dos Beatles e sob a direção do encenador José Alves Antunes Filho, ou, simplesmente, Antunes Filho, também responsável por duas excepcionais montagens realizadas pelo Centro de Pesquisa Teatral do Sesc Vila Nova, “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e “Nelson 2 Rodrigues” (“Toda Nudez Será Castigada” e “Álbum de Família”), que estréiam, respectivamente, nos próximos dias 2 e 9 de maio, no mesmo Teatro Anchieta.

A referência a dramaturgia de Lenz é bom que se esclareça – se dá na medida em que Antunes Filho, assim como o notável saqueador da herança cultural de Shakespeare, não presta reverência ao senhor absoluto do teatro elizabetano, a ponto de minimizar aspectos que pareciam relevantes em outras encenações, retirando do palco tudo o que lhe parecesse supérfluo (não há cenários, apenas poucos elementos cênicos que sugerem e não revelam) para o triunfo de sua obsessão, “uma elegia encalacrada na nossa garganta há muito tempo”, como frisa o diretor.

Foram necessários dois anos para que “Romeu e Julieta” chegasse à sua definitiva versão. Pode-se até discordar dela, mas é impossível desprezar a seriedade do trabalho de Antunes e do Centro de Pesquisas Teatrais do Sesc por ele dirigido e que já consumiu, em pouco mais de dois anos, perto de Cr$ 150 milhões, dos quais boa parte destinada à produção do clássico de Shakespeare e à remontagem de “Macunaíma” e “Nelson Rodrigues 2”.

A escolha de “Romeu e Julieta” para inaugurar o projeto do teatro de repertório do CPT não foi causal. Com a desaprovação da adaptação de “Quaderna, o Decifrador” (dois romances de Ariano Suassuna) pelo autor,, Antunes Filho selecionou 25 atores e montou a tragédia shakespeariana, “como um patamar para encenar futuras obras clássicas e ampliar as possibilidades do elenco”, todo ele formado por jovens. Foram dois duros anos para que eles se acostumassem à rigidez do chamado “método Antunes”, cujo principal mandamento é “não há teatro sem técnica e ideologia”.

Pela parte técnica respondem os métodos do teórico e encenador Stanislavski, Bertolt Brecht, referências da obra de  Diderot, técnicas Zen e, futuramente, a Gestalt, após ter sido o elenco previamente introduzido ao universo jungiano. “Depois de aprender, o ator deve jogar todos os modelos fora e prolongar a realidade”, recomenda a receita de Antunes, “até que seja possível interpretar sem pensar”. Há quem desista no meio do caminho, após tantas horas dedicadas à literatura e ao palco. Aos que ficam, porém, resta o consolo de integrar, nada menos do que a primeira grande cooperativa de teatro de repertório, após vinte anos de absoluto obscurantismo participando, ao mesmo tempo, de três montagens diferentes (todos os 25 atores de  “Romeu e Julieta” estão em “Macunaíma” e “Nelson Rodrigues 2”).

Antunes não nega ser exigente. Talvez fosse difícil para os jovens atores de “Romeu e Julieta” entender a “leitura” da obra de Shakespeare proposta pelo diretor, baseando-se na máxima de Roland Barthes, de que o discurso amoroso representa, hoje, um ato de subversão. Mas, ao contrário de Barthes, Antunes procurou livrar-se de qualquer cínica atitude diante da monumental tragédia dos amantes de Verona, em troca de um frescor que, admite, foi encontrar na juventude de seus intérpretes. Por isso, as “ingênuas” letras das composições dos Beatles – como “She’s Leaving Home”,  em todas as cenas em que Julieta ameaça abandonar o seio familiar – são tocadas em “stacatto”, nessa sinfonia regida por Antunes contra os poderes autoritários.

O recurso é novo (o próprio Antunes pontuou sua “A Megera Domada”, há alguns anos, com os Beatles) mas, ele garante, a proposta sim. Às críticas dirigidas a outros espetáculos por ele criados e a seus métodos – entre elas, as do diretor  José Celso Martinez Corrêa – responde que jamais pretendeu assumir o discurso do colonizador: “Tropicalismo, sim, já era. É ‘Alô Doçura’, mero replay. E, depois, não levo em conta críticas de quem considera Nelson Rodrigues um autor de peças de costume. Isso é redução, é não entender nada.”

Tampouco leva em conta as críticas dirigidas a seu grupo, formado principalmente por atores não profissionais, pelo sindicato da categoria, justamente por empregar  atores sem registro. “Eu mesmo sou profissional por acidente, diz, classificando-se como um ‘amador’ de teatro, no sentido que sou apaixonado pelo teatro”. E conclui: “O Sindicato deveria proteger os atores, e não voltar-se contra eles”.

O diretor Ulisses Cruz, assistente de Antunes no CPT, vem em sua defesa e afirma: “O jovem tem disponibilidade de tempo, os profissionais não. Acho que o Sindicato deveria conversar com os atores que estão se formando no Centro de Pesquisas e trabalhando em cooperativa nas peças, para ver o que eles pensam a respeito. Qual a escola que fornece formação gratuita para o ator, no Brasil,  e ainda dá oportunidade para que ele se exercite?”

Cruz está dirigindo uma outra produção do CPT com estréia ainda não marcada (é possível que seja uma adaptação do livro  de Jorge Amado, “Os Velhos Marinheiros”) e, como  crítico de teatro ( do jornal “Diário do Grande ABC”), credita ao teatro de repertório do Sesc o mérito de “ter acabado com o marasmo desesperador que reinava no Brasil, onde os espetáculos acabaram cansando o espectador pela repetição contínua de fórmulas”.

A unidade do Sesc-Vila Nova, segundo seu diretor Beto Rampone, vai continuar incentivando todos os projetos do Centro de Pesquisas Teatrais,  pelo qual já passaram mais de mil pessoas, desde a sua criação, em 1982. “Estamos criando, inclusive, novos núcleos de produção, entre os quais o do ator Luis Henrique (um dos integrantes do grupo Macunaíma), que dirigiu um espetáculo chamado ‘A Terceira Idade’, o próximo a estrear (em maio, provavelmente). No Centro estão sendo, também, ministrados três cursos e desenvolvidos ‘workshops’ em torno da obra de Guimarães Rosa, para um futuro espetáculo. Desativamos até o teatro Pixinguinha, na unidade do Sesc-Vila Nova, para que o CPT utilizasse  suas instalações para ensaios e apresentação de peças. O Centro veio realmente para ficar”, garante Rampone.

(Antonio Gonçalves Filho)

 

Julieta jovem, Romeu veterano

Em menos de dois anos Antunes Filhos construiu o par de atores desta respeitada tragédia shakespeariana, “Romeu e Julieta”, numa montagem talhada pelo desejo da pureza que inclui emoções mais ou menos controláveis, beijos e abraços juvenis: tudo recoberto pela música dos Beatles, de melancólica memória.

Julieta Capuletto sai da energia artística de Giulia Gam, 17 anos. Neta de dinamarqueses e nascida na Itália, tinha, até um ano e meio atrás, três atividades básicas: as aulas do curso de segundo graus, de flauta transversal e de esgrima. No mais, pensava às vezes no teatro mas, pela “impropriedade” de seus então 16 anos, pouco o assistia. Nessa situação, de Antunes Filho conhecia o nome e a fama. Giulia chegou no Sesc em meio a um processo de ensaios que ainda incluía “Quaderna, o Decifrador”, baseada no livro “A pedra do Reino”, de Ariano Suassuna. Fez testes, virou a Julieta cheia de paixão e decisão.

Nada fácil, disse. Mergulhou num trabalho que considerou sério, onde “se procuram caminhos a partir de cenas. Esse ‘Romeu e Julieta’ quis substituir os mitos trazidos em Shakespeare por algo mais humano, quebrando distâncias, tirando estereótipos. Para mim o trabalho exige muita dedicação, muita verdade, mexe com os sentimentos”.

Giulia, figura delicada (lembra a Julieta de Zeffirelli, Olívia Hussey) embarcou no teatro de Antunes – “não conheço outro, estou chegando agora” – de corpo e cabeça. Anda experimentando coisas novas, mas sem meta definitivva: nem quer isso, ainda. Fica com a surpresa do Grupo Macunaíma – onde atua também em “Nelson 2 Rodrigues” e “Macunaíma” – mais a vontade de reestruturar a vidinha, voltando à flauta e ao esporte. “Antes de começar no teatro eu queria fazer medicina veterinária, um monte de coisas, um monte de coisas. Participava de competições de esgrima, na equipe juvenil. Ainda não sei como vai ser...”

Perto dela, o Romeu Montecchio, Marco Antônio Pâmio, tem anos de janela. Giulia, no máximo, queria procurar um curso de teatro. Ele, 22 anos, veio de uma pequena experiência na Cultura Inglesa, onde há uma certa tradição de botar a moçada para montar peças e exibir entre escolas da rede. Olhando de fora, acredita ter ganhado algum “padrão de teatro”. Nosso Romeu, que “antes nunca tinha lido um livro específico”, andou discutindo Diderot, Stanislavski, Jung, textos teatrais e da época da Idade Média.

Diz Pâmio: “Macunaíma é Brasil. É uma festa. A gente pisa no palco e embarca. Nelson Rodrigues... sempre gostei daquela coisa da tragédia que vai ao extremo; fora o lance do inconsciente, do urbano. ‘Romeu e Julieta’ está viva, respira. Nela, quisemos tirar a visão do clássico sem deixar de ser clássico, sem deixar de ter a paixão, o amor e o ódio dos personagens de Shakespeare. Esta peça, como tudo o que se faz com Antunes, atingiu um resultado bom para agora, mas não está fechada, nunca. Procuramos apenas desmistificar a coisa babaca, romântica e idealista das figuras.”

Apaixonado pelo que anda fazendo, Pâmio não tem mais vida fora do prédio da rua Dr. Vila Nova. Faz o último ano do curso de Publicidade da ECA, “assim...”. Deixou de dar aulas de inglês, então só tem o dinheiro dos pais. Passeios e namoros ficaram para segunda-feira, folga geral do grupo. No mais, o negócio é curtir o trabalho e o mestre Antunes: “Ele me deu a base técnica e filosófica; despertou a coisa de ser artista, criando. Com ele, nada é fácil, tem que suar. Dá a bronca e nem quer saber da crise pessoal. Mas espera que a gente volte ao palco e faça o que é preciso.”

Este Romeu de cabelos encaracolados e riso franco deve ter seus motivos para se sentir feliz. Pois não foi um dos “sobreviventes” dos 1800 aspirantes a uma vaga na trupe de Antunes? Chegou como quem não quer nada e, de “peneira em peneira” garantiu a vaga, depois o papel principal. Estudou firme, querendo “dar verdade a coisas poéticas, para que não pareçam artificiais no palco” e hoje, dia de estréia na capital (eles já se apresentaram pelo ABC e interior) admite: “Devo isso tudo a Antunes.”

(Lígia Sanches)

Fonte: Folha de São Paulo