Uma paulista e um baiano: mistura certa

13/09/2004 17:49

Os sotaques continuam por lá, o dele mais do que o dela, justiça seja feita, mas tanto o baiano Wagner Moura quanto a paulista vêm se sentindo cada vez mais cariocas. O passo que faltava para assinar embaixo a nova naturalidade – os dois já se mudaram definitivamente para o Rio há uns quatro anos – será dado no palco.

- Mesmo quando ensaiava no Rio, sempre trabalhava com gente da minha “família” – diz Giulia referindo-se a diretores ligados a São Paulo com quem começou a atuar, como Antunes Filho, Gerald Thomas e José Celso Martinez Correa, e a outros com quem trabalhou mais recentemente, como Monique Gardenberg.

- E a minha “família” é fundamentalmente nordestina – diz Moura, que ficou conhecido no Rio depois de fazer parte do elenco de “A Máquina”, do pernambucano João Falcão.

A dupla de atores trai (mas com muito respeito) pela primeira vez suas “famílias” com “Dilúvio em tempos de seca”, peça do carioca Marcelo Pedreira em cartaz desde quinta-feira nos escombros do Teatro Dulcina, sob a direção de um cearense que há anos vem trabalhando no Rio: Aderbal Freire-Filho.

- Antunes fez do teatro dele uma escola, Gerald tem uma marca especial e o Zé também. O que diferencia Aderbal deles é ele ser mais aberto a novas estéticas – compara Giulia. – É bom voltar a trabalhar com um mestre.

Para Giulia, o desafio maior foi conseguir romper com a formalidade

O fato de se tratar de um espetáculo dirigido por Freire-Filho fez com que Moura aceitasse o convie para fazer “Dilúvio em tempos de seca”.

- E por ser uma oportunidade de trabalhar com a Giulia – derrete-se Moura, que antes só traíra a sua “família” atuando ao lado de Marieta Severo e Marco Nanini em “Os Solitários”, de Felipe Hirsch. – Mas era um papel pequeno.

O fato de Giulia e Moura terem se formado em “famílias” diferentes foi, na opinião de ambos, uma vantagem e não uma desvantagem na hora de descobrir os personagens, um escritor ensimesmado em sua obra e em suas angústias literárias e uma modelo regada a drogas e álcool, que aceita servir de musa inspiradora.

- Wagner fez com que eu conseguisse romper com a minha formalidade – elogia Giulia. – Eu me acostumei a fazer textos clássicos, mas para viver esta personagem precisava me livrar de qualquer impostação, precisava ser uma mulher despachada, que fala o que lhe vem à cabeça. Wagner me ajudou a deixar a formalidade de lado e investir numa linguagem mais surrealista, brincar com as convenções.

Em cena, a química é de fato perfeita.

- Os personagens se pegam, eles se agarram e se batem o tempo todo, não daria para fazer esta peça com uma atriz que não tivesse disposta a se jogar, a se entregar – elogia Moura, que passa a peça arremessando baldes de água gelada na personagem sempre que ela tenta discutir a relação. – Não daria para fazer se eu tivesse medo de pegar no peito dela.

Os atores já se conheciam de vista há anos, mas só trocaram algumas palavras no ano passado quando se esbarraram no aeroporto de São Paulo. Os dois vinham do nordeste. Ele, das filmagens de “Cidade Baixa”. Ela, de “Árido Movie”. Os dois brincam que o encontro em breve vai se tornar uma lenda urbana, de tanto que já repetiram a história recentemente.

- Brinco que tirava o cabelo, já que usava megahair nas filmagens e ele estava indo pôr por causa do programa “Sexo Frágil” – diz Giulia.

A primeira ideia de Giulia era ter Moura no elenco de “Quando nós os mortos despertamos”, de Ibsen, que passou um ano tentando montar, sem sucesso. Mas ao ver Moura numa leitura no “Tudo é teatro”, projeto de dramaturgia coordenava no Espaço Sesc, descobriu que ele seria o ator perfeito para fazer o escritor angustiado de “Dilúvio em tempos de seca”.

- Quando começou a leitura, eu, Sérgio (Martins, produtor do espetáculo) e o Marcelo (Pedreira) nos olhamos e tivemos a certeza de que seria ele – conta ela. – No fim da leitura, fomos fazer logo o convite.

E não foi só a possibilidade de trabalhar com Aderbal (“Qual é o ator não quer ser dirigido por ele?”) e Giulia que levou Moura a aceitar o convite. O ator também ficou seduzido pelo texto, já montado anteriormente pelo próprio autor, já dois anos, no Teatro do Jockey.

- Aparentemente é uma peça sobre um escritor que vive a angústia da criação e pede para que uma modelo o ajude a escrever, mas, na verdade, isso é um pretexto para falar sobre como as pessoas se relacionam, nos dias de hoje – analisa Moura. – Vivemos num mundo em que nos defendemos de tudo. Estes personagens se expõem e se escondem o tempo todo, mas no fim conseguem se comunicar.

Para Giulia, uma das qualidades de “Dilúvio em tempos de seca” é não se limitar apenas a um texto sobre um homem e uma mulher discutindo relação. E confessa que a peça lhe trouxe um novo desafio.

- Não sou muito falante e a personagem fala o tempo todo – compara ela. – O meu maior medo é ter um branco.

Entretanto, o mundo destes dois personagens trancados num banheiro enquanto lá fora cai um chuva torrencial que parece irá varrer a raça humana não termina.

- A peça mostra que é possível haver o amor, e o amor humano, não divino – acrescenta Moura. – Eles passam por loucuras até conseguirem se abraçar. Bom seria se eles pudessem fazer isso de primeira, sem passar por tudo aquilo, mas é preciso.

Fonte: Jornal O Globo