Uma revista sem caixa postal

26/08/1995 05:28

Caras ignora protesto de Giulia Gam porque...não tem seção de carta

Imagine-se indo a uma loja reclamar de um produto defeituoso e ouvir do gerente a seguinte explicação: não vou lhe dar ouvidos porque a loja não tem serviço de atendimento ao consumidor. Foi o que a revista Caras fez com a atriz Giulia Gam. Ela escreveu carta contestando reportagem de capa do número de 21 de julho, em que foi agraciada com o título “Giulia Gam fala de seus planos de casar e ter filhos com o herdeiro da Folha de S.Paulo” (a atriz namora o diretor de redação da Folha, Otavio Frias Filho).
A carta não foi publicada por um motivo tão insuspeitável quanto burocrático: a revista não tem seção de cartas. Mesmo para uma publicação atípica como Caras, a ausência de uma seção de cartas talvez seja o paroxismo da arrogância e da indiferença ao direito de resposta num meio de comunicação.
Um espaço onde os leitores possam dar opinião e eventualmente reclamar de reportagens que considerem insatisfatórias não tem servido, na imprensa brasileira, como garantia de que quem reclama será ouvido. Mas deveria ser - sobretudo porque, antes de serem uma liberalidade da imprensa, as seções de carta são o esconderijo onde jornais e revistas confinam as contestações a seus erros de método e derrapagens éticas. Como todos sabem e ninguém pratica, a legislação garante o direito de resposta ao determinar que seja publicada no mesmo local e com feição gráfica idêntica à da reportagem contestada. Mas na verdade as contestações saem, quando saem, na coluna de cartas, e em geral seguidas de uma declaração de infalibilidade do jornal ou revista. Muitas vezes as cartas vão diretamente para o lixo. A revista Veja, por exemplo, varreu para fora das páginas uma crítica do superintendente da Petrobrás, José Fanccine, que flagrou erros cabeludos numa reportagem de capa sobre a empresa de petróleo, e também deixou inédita carta da Fundação Seade que apontava a miragem de certas estatísticas divulgadas pela revista.
Em contraste, a revista em CD-ROM Neo Interativa publicou no número 4, que circulou em julho, carta eletrônica do americano Richard Pedicini fazendo reparos à retrospectiva do ano de 1994 preparada pela Agência Estado e publicada pela Neo, no número 3, com o título de CD do Ano. Na “retrospectiva”, Pedicini foi dado como molestador de menores no escândalo da Escola Base. Em maio passado, foi absolvido pela Justiça depois de ser inocentado pelos vizinhos e pelas crianças a quem, segundo a imprensa noticiou na época, ele bolinava. As crianças e seus pais fizeram fila na delegacia para afirmar que o americano não os importunava, não tirava fotos eróticas, nada fizera contra a lei que eles soubessem. Como se tratava de invencionice, a exemplo de todo o caso da Escola Base, o inquérito foi arquivado, mas só a Folha deu destaque à inocência do americano. Em 28 de agosto, Pedicini foi entrevistado no Jô Onze e Meia e pôde mostrar o linchamento que sofreu no passado e a permanência da nódoa em sua biografia que o silêncio da imprensa não ajuda a limpar. A imprensa, tal como a polícia, não gosta de inocentes, mas Pedicini parece disposto a enfrentá-la. Daí ele ter sido o pioneiro na resposta eletrônica acatada pelo Neo Interativa.
Quando uma revista em CD-ROM publica uma carta dessas, e outra, em papel, cheia de páginas com palavras cruzadas e receitas de bolo, não abre espaço para uma personalidade pública criticar o que escreveram sobre ela, é hora de a imprensa discutir a serventia das suas seções de carta e a forma vampiresca como se apropria da vida dos entrevistados, sem lhes dar chance posterior de retocar a própria biografia.
A prática demonstra que as cartas são selecionadas de acordo com o caráter do veículo - e há evidente preferência pelos elogios. Uma pesquisa em curso no Instituto Gutenberg está analisando “o cantinho do leitor” dos principais veículos do Brasil [seções de cartas do Estadão e da Folha] e demonstra preliminarmente que nos dois maiores jornais de São Paulo elas são uma vitrina da vaidade. A maioria das cartas publicadas (32,3% na Folha e 25,3% no Estadão) imprime elogios aos jornais e seus articulistas. A critica soma 29,7% da correspondência na Folha e 12,6% no Estadão - e do total geral de cartas publicadas, 6,6% são respondidas com o tradicional corpo negrito, que demarca a superioridade gráfica da resposta. Em apenas 1,% dos casos, na Folha, e 0,7% no Estadão, as cartas forçaram os jornais a publicar correções.
Nada se compara, no entanto, ao silêncio de Caras. O caso é muito interessante por envolver uma editora séria, a Abril, e uma atriz simpática, de vida limpa, que contestou uma reportagem em que não é acusada de crimes ou qualquer prática condenável. Apesar do tom de almanaque de moças, a reportagem também não fez a fofocagem que a imprensa gosta de manter em linha direta com gente famosa. Giulia Gam teve, porém, a ousadia de apontar a forma cosmética como foi retratada e desnudou o modelo bricabraque com que se fazem muitos perfis na imprensa brasileira: junta-se recortes de jornais, faz-se uma entrevista rápida, aproveita-se fotos antigas e vende-se ao leitor um cozido requentado como se fosse a mais recente expressão da verdade.
Acostumada a ser capa de revista e ter sua vida revirada por fofoqueiros, Giulia Gam reclamou que a reportagem “é uma colcha de retalhos, em que uma parte é tirada de entrevistas para outros veículos, e a outra não passa de fantasias de quem escreveu, sem assinar a matéria”. As fotos foram feitas na França, quando a atriz gravava a novela Fera Ferida, um ano antes de serem estampadas na capa da revista como se tivessem sido produzidas recentemente.
A história de Giulia Gam só veio a público por que trechos da carta da atriz foram revelados pela Folha de S. Paulo (28-7). “Giulia Gam nega entrevista publicada em Caras”, informou a Folha. Segundo o jornal, a revista explicou que a entrevista com a atriz fora feita em 23 de março – e publicada no final de julho – por um colaborador. “Giulia diz que o texto publicado não corresponde àquela entrevista e que dados posteriores à data foram acrescentados”, disse a nota da Folha, quebrando o ineditismo a que o incidente estava condenado por falta de reação da revista acusada. A Folha já revelara semelhante pendência de um compositor com a revista Playboy. O caso de Giulia Gam com Caras, ainda que a maior parte da imprensa tenha omitido, é notícia por envolver uma personalidade ( e uma revista) do mundo artístico.
A propósito: no mesmo dia em que a Folha revelava o corte sumário de Giulia Gam na redação de Caras, só a Gazeta Mercantil publicou despacho da agência Reuters dando conta de que o ator Arnold Schwarzenegger ganhou um processo contra a revista francesa Voici. Parece piada, mas é fato que o grandalhão mais conhecido pelos músculos que pelos neurônios pôs na parede uma publicação que, como tantas e tantas, reproduz fofoca sobre gente famosa. Atribuindo a informação a uma fonte anônima, a revista publicara que o ator era cliente da caftina mais famosa de Hollywood, madame Heidi. Schwarzenegger disse que nunca foi, abriu e ganhou o processo, mas deixou claro que não quer dinheiro, quer respeito, e informou que doará a indenização a uma instituição de caridade. “As pessoas famosas são muitas vezes vítimas de histórias falsas e mal intencionadas”, disse o ator.
Quando nega a uma personagem de suas páginas o direito de fazer reparos a material publicado, a brasileira Caras parece indicar que em vez de escrever para a revista deve-se escrever para o juiz.



Artigo produzido originalmente para Deadline e publicado no número 116 daquela "newsletter" com o título “A imprensa brasileira e o direito de resposta”.

     Boletim Nº 5 Agosto-Outubro de 1995
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